terça-feira, 24 de novembro de 2015

Goji berry: super ou subvalorizada?




Adorada por muitos, desprezada por outros. Essa é a goji berry.

Desde que o seu consumo virou moda, passamos a ouvir todo tipo de comentário sobre a goji berry. O principal deles é a alegação de que ela seria um excelente alimento para quem quer emagrecer. E não poderia ser diferente, já que esse é o objetivo de quase todo mundo que busca informações sobre alimentação e nutrição — então é normal esperar que esse seja um dos maiores apelos relacionados à goji berry ou a qualquer outro alimento que ganha popularidade.

Ela obviamente começou como mais um alimento milagroso, com o status de "superalimento", seguindo os passos de vários antecessores, como chá verde, linhaça, chia, açaí e quinoa. Pouco tempo depois vieram os “justiceiros” para desmistificar as alegações sobre os benefícios da goji berry, afirmando que ela não é nutricionalmente superior aos mais diversos alimentos que já consumimos habitualmente.

Mas quem está certo? Faço essa pergunta porque, se olharmos com o mínimo de cuidado, é fácil perceber que na maioria das vezes os argumentos, em ambos os lados da história, não são devidamente embasados (independentemente de serem, mesmo "sem querer", verdadeiros ou não).


Os argumentos

Como forma de justificar o consumo de goji berry, aqueles que a defendem normalmente exaltam sua elevada concentração de nutrientes ou o fato de ela ser uma fruta culturalmente ligada à medicina chinesa e a outras tradições do leste asiático. De forma genérica, nutriente por nutriente, vários alimentos poderiam ser classificados como “superalimentos”, tendo em vista que é relativamente fácil encontrar um nutriente específico (ou até mais de um) que se destaca em cada alimento. Além disso, por mais que a medicina chinesa tradicional recomende o consumo de goji berry, isso por si só não é suficiente para confirmar que ela traz benefícios à saúde.

Do outro lado, aqueles que não consideram a goji berry como um alimento milagroso dizem que a fruta não apresenta qualquer vantagem nutricional verdadeiramente única que não poderia ser suprida por outros alimentos e, principalmente, por uma alimentação de qualidade. Isso é verdade. Só que, se pensarmos bem, é uma verdade que poderia ser dita sobre qualquer outro alimento. E é por isso que essa simplificação limita a nossa interpretação da importância que alguns alimentos ou grupos alimentares podem ter sobre a saúde.

Quando avaliamos parâmetros específicos de nutrição e saúde, se não pudermos considerar nenhum alimento como mais benéfico que outro(s), jamais poderíamos falar que o alimento X, ou o padrão alimentar Y, são capazes de reduzir o risco de desenvolvimento de uma doença Z.

Temos uma série de estudos mostrando que a simples adição de alguns alimentos à dieta é capaz de proporcionar efeitos positivos em diversos marcadores de saúde. Por exemplo, substituir carboidratos complexos por 84 g/dia de amêndoas, em uma dieta de restrição calórica (mantendo as mesmas quantidades de calorias e proteínas) que durou 24 semanas, levou a reduções mais significativas no peso, IMC, circunferência da cintura, massa gorda e pressão arterial sistólica em indivíduos com sobrepeso [1]. Em outro estudo, a ingestão de uma unidade de ovo por dia, em vez de mingau de aveia, durante 5 semanas, melhorou marcadores inflamatórios em pacientes com diabetes tipo 2 [2]. Mais um estudo com diabéticos: o consumo de 59 a 128 g/dia de pistache por 4 semanas (representando 20% das calorias totais) foi mais benéfico para melhorar o perfil lipídico (razão CT/HDLc e triglicerídeos) e reduzir a glicação (frutosamina) do que lanchinhos ‘fat-free’ [3]. Outra demonstração: em indivíduos saudáveis, a ingestão de vinagre (18, 23 e 28 g) foi capaz de atenuar o aumento na glicemia e insulinemia induzido pela ingestão de pão (quanto maior a dose de vinagre, melhor foi a resposta); de que quebra, cada aumento na quantidade ingerida de vinagre proporcionou maior sensação de saciedade nos participantes [4].

Esses estudos mostram que alguns alimentos podem, de fato, conferir interessantes benefícios à saúde. E se isso é verdade para os exemplos citados, também pode ser verdade para a goji berry.

De qualquer maneira, para que a "defesa" ou o “ataque” à goji berry sejam justos, é imprescindível que os argumentos utilizados sejam válidos e devidamente embasados.


O consumo de goji berry realmente traz benefícios?

Dezenas de estudos in vitro e com animais já avaliaram o efeito da goji berry nas mais diversas condições clínicas e patológicas [5,6]. Nesses casos, assim como para diversos outros alimentos e compostos testados em estudos com animais e células, os resultados são extremamente promissores. Já foi demonstrado que a goji berry, principalmente a partir da sua fração de polissacarídeos, é capaz de exercer efeitos antioxidantes, imunomoduladores, antitumorais, neuroprotetores e antidiabéticos [5,6,7].

Mas como não posso deixar de enfatizar (sempre!), a história só fica completa mesmo com estudos em humanos.

E ao consultarmos a literatura científica, rapidamente percebemos que já se estuda a goji berry há algum tempo.

Em 2009, pesquisadores dos Estados Unidos verificaram, em um ensaio clínico randomizado, que uma dose diária de 120 mL de um suco padronizado de goji berry (equivalente a pelo menos 150 g da fruta fresca), comparada a uma bebida placebo com características sensoriais iguais), melhorou parâmetros imunológicos como contagem total de linfócitos, IL-2 e IgG em participantes idosos, após 30 dias de suplementação [8]. Além disso, os indivíduos que ingeriram o suco de goji berry também apresentaram maior sensação de bem-estar, com melhorias na fadiga e no sono, e uma tendência de aumento na capacidade de foco e de melhora na memória de curto prazo. Nenhum efeito adverso foi observado.

O efeito imunomodulador da goji berry foi novamente avaliado em 2012 [9]. Nesse ensaio clínico randomizado duplo-cego, 150 chineses idosos foram divididos em dois grupos: placebo ou intervenção. O pessoal do grupo intervenção consumiu, durante 3 meses, uma formulação láctea à base de goji berry, leite desnatado e maltodextrina. O grupo placebo recebeu uma formulação bastante semelhante, com a goji berry substituída por sacarose (açúcar comum). A duas bebidas apresentavam as mesmas características visuais, de sabor, de aroma e de textura. Ao final do estudo, foi verificado que os idosos que receberam a suplementação de goji berry responderam de forma mais positiva a vacinações contra o vírus influenza, aumentando a produção de IgG específica para o antígeno. O interessante desse estudo é que ele mostrou, numa situação real, que a suplementação com goji berry pode influenciar de forma positiva a resposta imunológica de pessoas idosos — uma população que, muitas vezes, possui um sistema imune comprometido.

Além dos polissacarídeos, a goji berry possui uma quantidade interessante de carotenoides, especialmente zeaxantina [6]. Tendo em vista que a suplementação de carotenoides pode auxiliar no tratamento de alguns problema oculares, como a degeneração macular [10,11,12,13], a goji berry também já foi estudada nesse contexto. Os mesmos indivíduos do estudo anterior [9], nas mesmas condições, foram testados para ver se a suplementação da bebida láctea de goji berry seria capaz de influenciar positivamente a mácula, os níveis sanguíneos de zeaxantina e a capacidade antioxidante dos idosos [14]. Após 3 meses de intervenção, os níveis de zeaxantina e a capacidade antioxidante dos idosos aumentaram em 26% e 57%, respectivamente, após a suplementação com goji berry, enquanto que nenhuma alteração foi observada no grupo placebo. Porém, o resultado mais interessante foi que o grupo que ingeriu o placebo apresentou alterações negativas na mácula, enquanto que o grupo que consumiu goji berry, não. Assim, é possível que a ingestão frequente de goji berry possa auxiliar a atenuar, ou até mesmo prevenir, a degeneração macular associada à idade.

Vale ressaltar que a capacidade da goji berry em aumentar os níveis de marcadores antioxidantes [15] e os níveis de zeaxantina já havia sido demonstrada anos antes [16,17], confirmando que esse carotenoide é capaz de ser absorvido e também de exercer efeitos na saúde humana por meio da ingestão dessa fruta; a homogeneização de goji berry em leite quente aumenta ainda mais a biodisponibilidade de zeaxantina [18].

Mas os benefícios da goji berry podem ir além de tratar ou prevenir doenças. O seu consumo pode ser vantajoso no sentido de promover saúde. Uma meta-análise de quatro ensaios clínicos randomizados, de 2013, avaliou o efeito da ingestão de goji berry em diversos parâmetros de bem-estar e saúde geral [19]. Foi verificado que, comparado a intervenções placebo, o consumo de goji berry mostrou melhorias nos seguintes parâmetros: fraqueza, estresse, acuidade mental, qualidade do sono, falta de ar, fadiga e sensação geral de bem-estar.

E, por fim, a pergunta quer não quer calar: comer goji berry ajuda a emagrecer?  Um estudo de 2011 buscou esclarecer essa dúvida [20]. Em um breve período de duas semanas, a ingestão de suco de goji berry foi capaz de reduzir em 5,5 cm a circunferência da cintura dos participantes desse grupo, enquanto que aqueles que consumiram a bebida placebo não apresentaram alterações nesse parâmetro.




Infelizmente, outras medidas de composição corporal, como peso, percentual de gordura e massa magra, não foram relatadas. De qualquer maneira, os pesquisadores verificaram, ainda, que a ingestão do suco de goji berry levou a um aumento na taxa metabólica de repouso e no gasto energético pós-prandial — resultado este que ajudaria a explicar a redução na circunferência da cintura que foi observada.


Considerações finais

Vale ressaltar que, com exceção de um estudo [16], todos os ensaios clínicos que mostraram benefícios, assim como os estudos incluídos na meta-análise, receberam apoio financeiro de empresas que comercializam produtos fabricados utilizando a goji berry como matéria-prima.

Isso não necessariamente significa que os resultados positivos observados não são verdadeiros — como já mencionei aqui. Porém, é inegável que, de fato, existe um enorme conflito de interesses por trás dos estudos que envolvem a goji berry. Por isso, o ideal é que exerçamos nosso ceticismo e tenhamos uma visão crítica antes de aceitar essas evidências como “definitivas” sobre os benefícios trazidos pela por essa fruta.

Existem evidências suficientes para mostrar que, em humanos, a goji berry pode trazer todos os benefícios alegados por quem a defende? Certamente não. Mas os estudos que já foram feitos apresentaram resultados interessantes? Sim, com certeza — principalmente, na minha opinião, a redução de mais de 5 cm da circunferência da cintura em apenas duas semanas, o que demonstra um potencial considerável em favorecer o emagrecimento.

Sendo assim, não custa nada testar na prática como o consumo de goji berry influencia a sua saúde (até custa, porque não é um alimento barato; mas, se os resultados forem bons, é um custo que pode valer a pena). Como já mencionei várias vezes, nutrição é sinônimo de experimentação





Referências

1. Wien MA, et al. Almonds vs complex carbohydrates in a weight reduction program. Int J Obes Relat Metab Disord. 2003;27(11):1365-72.

2. Ballesteros MN, et al. One egg per day improves inflammation when compared to an oatmeal-based breakfast without increasing other cardiometabolic risk factors in diabetic patients. Nutrients. 2015;7(5):3449-63.

3. Sauder KA, et al. Effects of pistachios on the lipid/lipoprotein profile, glycemic control, inflammation, and endothelial function in type 2 diabetes: a randomized trial. Metabolism. 2015;64(11):1521-9.

4. Ostman E, et al. Vinegar supplementation lowers glucose and insulin responses and increases satiety after a bread meal in healthy subjects. Eur J Clin Nutr. 2005;59(9):983-8.

5. Chang RC, So KF. Use of anti-aging herbal medicine, Lycium barbarum, against aging-associated diseases. What do we know so far? Cell Mol Neurobiol. 2008;28(5):643-52.

6. Potterat O. Goji (Lycium barbarum and L. chinense): Phytochemistry, pharmacology and safety in the perspective of traditional uses and recent popularity. Planta Med. 2010;76(1):7-19

7. Jin M, et al. Biological activities and potential health benefit effects of polysaccharides isolated from Lycium barbarum L. Int J Biol Macromol. 2013;54:16-23.

8. Amagase H, et al. Immunomodulatory effects of a standardized Lycium barbarum fruit juice in Chinese older healthy human subjects. J Med Food. 2009;12(5):1159-65.

9. Vidal K, et al. Immunomodulatory effects of dietary supplementation with a milk-based wolfberry formulation in healthy elderly: a randomized, double-blind, placebo-controlled trial. Rejuvenation Res. 2012;15(1):89-97.

10. Sabour-Pickett S, et al. A review of the evidence germane to the putative protective role of the macular carotenoids for age-related macular degeneration. Mol Nutr Food Res. 2012;56(2):270-86.

11. Liu R, et al. Lutein and zeaxanthin supplementation and association with visual function in age-related macular degeneration. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2014;56(1):252-8.

12. Huang YM, et al. Changes following supplementation with lutein and zeaxanthin in retinal function in eyes with early age-related macular degeneration: a randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Br J Ophthalmol. 2015;99(3):371-5.

13. Age-Related Eye Disease Study 2 Research Group. Lutein + zeaxanthin and omega-3 fatty acids for age-related macular degeneration: the Age-Related Eye Disease Study 2 (AREDS2) randomized clinical trial. JAMA. 2013;309(19):2005-15.

14. Bucheli P, et al. Goji berry effects on macular characteristics and plasma antioxidant levels. Optom Vis Sci. 2011;88(2):257-62.

15. Amagase H, et al. Lycium barbarum (goji) juice improves in vivo antioxidant biomarkers in serum of healthy adults. Nutr Res. 2009;29(1):19-25.

16. Breithaupt DE, et al. Comparison of plasma responses in human subjects after the ingestion of 3R,3R'-zeaxanthin dipalmitate from wolfberry (Lycium barbarum) and non-esterified 3R,3R'-zeaxanthin using chiral high-performance liquid chromatography. Br J Nutr. 2004;91(5):707-13.

17. Cheng CY, et al. Fasting plasma zeaxanthin response to Fructus barbarum L. (wolfberry; Kei Tze) in a food-based human supplementation trial. Br J Nutr. 2005;93(1):123-30.

18. Benzie IF, et al. Enhanced bioavailability of zeaxanthin in a milk-based formulation of wolfberry (Gou Qi Zi; Fructus barbarum L.). Br J Nutr. 2006;96(1):154-60.

19. Paul Hsu CH, et al. A meta-analysis of clinical improvements of general well-being by a standardized Lycium barbarum. J Med Food. 2012;15(11):1006-14.

20. Amagase H, Nance DM. Lycium barbarum increases caloric expenditure and decreases waist circumference in healthy overweight men and women: pilot study. J Am Coll Nutr. 2011;30(5):304-9.



quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Kefir faz bem mesmo?




A sabedoria humana vai além do conhecimento científico. Por milhares de anos, muito antes do começo da ciência da microbiologia (o estudo dos micro-organismos) — e por isso sem saber como funcionava —, a espécie humana já fazia o uso da fermentação. Essa técnica — que consiste na ação de micro-organismos, como bactérias e fungos, sobre os alimentos — foi e ainda é tradicionalmente utilizada para preservar e modificar os alimentos, produzindo neles alterações de sabor, aroma e textura.

Os exemplos mais comuns de alimentos fermentados são o iogurte e o pão, produzidos, respectivamente, a partir da fermentação do leite e da farinha de trigo. Claro, temos também as bebidas alcoólicas fermentadas, como o vinho e a cerveja. Além deles, outros alimentos relativamente conhecidos também se encaixam nessa categoria: diversos tipos de queijo, molho shoyu, natto, kombucha, misô, kvas, chucrute, filmjölk e kimchi. Para conhecer outros exemplos, confira essa lista da Wikipédia (em inglês).

E o que é a fermentação? Nada mais é do que o processo em que os micro-organismos utilizam algum tipo de substrato energético presente nos alimentos — normalmente carboidratos, entre eles glicose, lactose ou sacarose — como fonte de energia, modificando suas características de sabor, textura e aramo devido à transformação desses nutrientes em outros compostos e substâncias.

Hoje vamos falar de mais um exemplo de alimento fermentado: o kefir.


O que é o kefir?

A palavra kefir é provavelmente derivada do termo turco “keyif”, que, em tradução livre, significa algo como “sensação de bem-estar” ou “sentir-se bem” [1]. Originário da região do Cáucaso, há aproximadamente 1000 anos [2], o kefir é um alimento tradicionalmente consumido por países asiáticos e do leste europeu [1]. Ganhou também recente popularidade nos demais países da Europa, além de Japão e Estados Unidos, principalmente devido aos seus supostos benefícios à saúde [1]. A produção de kefir é essencialmente artesanal no Brasil [2]; porém, avanços significativos no sentido de viabilizar a produção de kefir em maior escala parecem estar surgindo [3].

Assim como o iogurte e o filmjölk, por exemplo, o kefir também é um alimento derivado da fermentação do leite. Como pode ser observado em mais detalhes na figura abaixo, o kefir caracteriza-se pela formação de “colônias”, denominadas grãos de kefir. Visualmente, é possível perceber que os grãos de kefir apresentam uma estrutura irregular semelhante a uma couve-flor, com uma coloração esbranquiçada-amarelada, possuindo uma textura firme e uma aparência “gosmenta” [4]. Os micro-organismos que compõem os grãos de kefir aglomeram-se através de uma matriz de polissacarídeos denominada kefiran [1,2,4].


[Clique na imagem para visualizá-la em tamanho real]


O kefir propriamente dito é a bebida originada a partir da fermentação do leite com os grãos de kefir. Para o kefir ser produzido artesanalmente, basta adicionar os grãos ao leite em temperatura próxima à ambiente (20 a 25 °C), esperar entre 18 e 24 horas e depois coar os grãos [1,5]. O leite, após essa fermentação, está pronto para ser consumido; os grãos de kefir podem, então ser usado para produzir mais kefir posteriormente.

Devido ao processo de fermentação, o kefir possui um sabor ácido e é uma bebida levemente gaseificada, principalmente pela produção de lactato/acetato e gás carbônico, respectivamente [1,5]. Outras substâncias, como diacetil e acetaldeído, são responsáveis pelo sabor e aroma característicos do kefir [1]. A diferença mais importante em relação aos demais alimentos fermentados do leite é que, para o kefir, são utilizadas dezenas de espécies diferentes de micro-organismos (bactérias e fungos) durante sua produção [1,5], enquanto que para os demais produtos normalmente se usa uma ou três culturas de bactérias apenas [1].

Apesar de ser mais comum a partir do leite de vaca, a produção de kefir muitas vezes acontece com os leites de cabra e de ovelha [2], sendo que o leite de outros animais, como camelo e búfalo, também podem ser utilizados para sua produção [1]. De forma semelhante, substitutos do leite — como 'leite' de nozes, 'leite' de soja, 'leite' de coco, 'leite' de arroz e 'leite' de amendoim — também podem ser utilizados para a produção de kefir [1,2].

E um detalhe interessante: o kefir, quando produzido a partir de leite integral, é considerado como uma bebida de maior qualidade quando comparado ao produzido com leite desnatado [2], apresentando aspectos sensoriais (odor, aroma, sabor, textura) mais agradáveis [6].


Composição do kefir

Existem distinções consideráveis na composição microbiológica de diferentes grãos de kefir, que podem variar de acordo com a região de obtenção dos grãos e de suas condições de “cultivo”, como tempo, temperatura e composição prévia de micro-organismos [2]. Abaixo, seguem alguns exemplos de bactérias e fungos normalmente encontrados em grãos de kefir [4,7,8]: 
  • Lactobacillus kefir
  • Lactobacillus kefiranofaciens
  • Lactobacillus kefirgranum
  • Lactobacillus parakefir
  • Lactobacillus brevis
  • Lactobacillus plantarum
  • Lactobacillus acidophilus
  • Lactobacillus rhamnosus
  • Lactobacillus casei
  • Lactobacillus paracasei
  • Lactobacillus gasseri
  • Lactococcus lactis lactis
  • Lactococcus lactis cremoris
  • Streptococcus thermophilus
  • Streptococcus cremoris
  • Streptococcus faecalis
  • Streptococcus faecali
  • Acetobacter aceti
  • Saccharomyces cerevisiae
  • Saccharomyces humaticus
  • Saccharomyces delbruecki
  • Candida kefir
  • Candida holmii
  • Kluyveromyces lactis
  • Kluyveromyces marxianus

Do ponto de vista nutricional, o kefir possui essencialmente os mesmos componentes que seriam encontrados em sua matéria-prima. Ou seja, se for um kefir produzido a partir do leite de vaca, ele apresentará basicamente os mesmos nutrientes contidos nesse leite. Porém, pode haver uma tendência no aumento de algumas vitaminas, como piridoxina (vitamina B6), folato (vitamina B9), cobalamina (vitamina B12) e biotina [5]; ao mesmo tempo, em alguns casos já foi verificada a redução na concentração de algumas vitaminas, como tiamina (vitamina B1), riboflavina (vitamina B2) e a própria cobalamina (vitamina B12) [5].

Tais variações certamente dependem da composição de micro-organismos de cada grão de kefir, a qual normalmente é impossível de se conhecer — a não ser que você solicite que algum laboratório de análise de alimentos ou de microbiologia realize um teste (o que, cá entre nós, não vai acontecer). De qualquer forma, como as variações de nutrientes em relação ao alimento original (o leite) não são muito grandes, nem para mais e nem para menos, a questão da composição de nutrientes do kefir não é algo que vale a pena se preocupar.


Quais são os benefícios do consumo de kefir?

O kefir, devido ao processo de produção da fermentação, é um alimento muito semelhante ao iogurte. Só por esse motivo, teoricamente já valeria a pena consumi-lo. E eu explico o porquê disso.

Hoje sabemos que o consumo de laticínios em geral está diretamente associado a diversos benefícios na saúde. O iogurte, entre esses alimentos, é o que merece maior destaque, já que sua associação positiva é a mais consistente na literatura científica. O maior consumo de iogurte está diretamente relacionado à redução no peso e ao menor risco de diabetes, doenças cardiovasculares e síndrome metabólica [9,10,11,12,13,14,15,16]. Inclusive, as evidências apontam que o consumo do iogurte e de outros laticínios em sua forma integral seria ainda mais interessante para reduzir o risco dessas doenças crônicas [11,17,18,19,20].

Além da gordura — inclusive pelo fato de que o consumo de iogurte desnatado também parece ser positivo para a saúde —, presume-se que boa parte dos benefícios associados ao iogurte seja por ele ser um alimento fermentado, e que por esse motivo as bactérias (probióticos) presentes nesse alimento — através de uma série de mecanismos [21] — seriam capazes de influenciar positivamente a saúde intestinal e geral de quem o consome. Se esse realmente for o caso, a ingestão de kefir provavelmente levaria aos mesmos (ou possivelmente até mais) benefícios.

Além disso, estudos realizados com animais e células já verificaram que o kefir pode possuir uma série de outros benefícios, incluindo propriedades antifúngicas, antibacterianas e anticâncer, além de potencialmente melhorar a resposta imunológica [2,4,5,7,22]. Apesar de serem indiretas, essas evidências sugerem, novamente, que o kefir pode ser uma alternativa muito interessante para a saúde em geral.

Por fim, temos as evidências provenientes de estudos em humanos, que testaram a influência da ingestão de kefir sobre algumas doenças e condições clínicas. Não são muitos estudos (se alguém souber de outros, por favor comente!), então vamos a eles.


St-Onge et al. (2002) [23]

Em um ensaio clínico randomizado cruzado (padrão-ouro para se testar relações de causa e efeito), homens adultos consumiram leite ou kefir durante 4 semanas para testar, primariamente, o efeito dessas bebidas sobre os níveis de colesterol. Por ser um estudo com desenho cruzado (cross-over), todos os participantes passaram por ambos os tratamentos, ou seja, cada um bebeu tanto o leite como o kefir (em períodos distintos). Durante o período do estudo, os participantes foram instruídos a manter seus hábitos normais de alimentação.

A ingestão de nenhum dos dois tratamentos influenciou o colesterol total, o colesterol LDL (LDL-c), o colesterol HDL (HDL-c) ou os triglicerídeos. Por outro lado, o consumo de leite e o consumo de kefir levaram ao aumento nas concentrações de ácidos graxos de cadeia curta nas fezes dos participantes, um indicativo da maior produção dessas substâncias — o que é positivo, uma vez que os ácidos graxos de cadeia curta estão relacionados com uma série de efeitos positivos para a saúde, como maior atividade anti-inflamatória e melhora da saúde intestinal [24,25]. O estudo concluiu que o kefir não deve ser considerado como um alimento capaz de reduzir os níveis de colesterol. (E mesmo que reduzisse, qual seria a real importância disso? Mais sobre esse assunto em textos futuros).


Hertzler & Clancy (2003) [26]

Em outro ensaio clínico randomizado cruzado, mulheres e homens adultos com intolerância à lactose foram recrutados. Eles consumiram 5 tipos de laticínios em 5 ocasiões diferentes: leite semidesnatado, iogurte sem sabor, iogurte com sabor, kefir sem sabor e kefir com sabor. Novamente, por ser um estudo com metodologia cruzada, todos os participantes ingeriram todas as bebidas, numa ordem aleatória.

Ao final do acompanhamento, verificou-se que os dois tipos de iogurte e os dois tipos de kefir levaram a uma menor produção de hidrogênio no teste de hidrogênio expirado, o que indica menor concentração de lactose nesses alimentos e/ou maior capacidade do organismo em digerir a lactose presente neles. Além disso, o consumo de ambos os tipos de iogurte e de ambos os tipos de kefir levaram à redução entre 50% e 70% nos sintomas de flatulência, quando comparados ao leite. Logo, apesar de ser um derivado do leite, o kefir — assim como o iogurte [27] — parece ser uma bebida bem tolerada por pessoas com intolerância à lactose.


Merenstein et al. (2009) [28]

Nesse ensaio clínico randomizado duplo-cego, que dessa vez não teve cross-over — até porque as condições da pesquisa não permitiam esse tipo de desenho experimental —, os participantes do estudo foram crianças, com idade entre 1 e 5 anos de idade, que estavam utilizando antibióticos para combater infecções do trato respiratório. Como o uso de antibióticos pode induzir diarreia em crianças com infecções, o objetivo do estudo foi avaliar se a ingestão de kefir é capaz de influenciar quadros de diarreia. Durante as 2 semanas do estudo, as crianças receberam dois tipos diferentes de intervenção: kefir ou placebo (kefir tratado termicamente, com o objetivo de eliminar as bactérias e fungo presentes na bebida). Os pais foram orientados a evitar oferecer às crianças qualquer outro tipo de produto lácteo fermentado ou probióticos.

Durante e após o período de intervenção, não foram observadas diferenças estatísticas no número de episódios de diarreia entre as crianças que consumiram kefir ou placebo. Além disso, também não houve diferenças em outros parâmetros secundários que foram aferidos, como vômitos, dores abdominais, tosse, febre etc. Resumindo: o consumo de kefir não foi efetivo em melhorar ou prevenir sintomas associados à diarreia induzida pelo uso de antibióticos.


Turan et al. (2014) [29]

Esse estudo avaliou a influência do consumo de kefir em pacientes adultos, com constipação, que apresentavam dois ou mais dos seguintes sintomas (durante 12 ou mais semanas nos últimos 2 anos): duas ou menos evacuações por semana; fezes ressecadas; dificuldade ou esforço ao evacuar; sensação de evacuação incompleta; sensação de “bloqueio” no anus ou reto; ou uso de “manobras” manuais para auxiliar na defecação. Como não houve um grupo placebo, podemos dizer que esse foi um estudo não controlado — fato este que diminui a “força” do estudo, já que não é possível comparar o efeito da ingestão do kefir em relação à ingestão de um placebo. Os pacientes foram orientados a não consumir outras bebidas fermentadas derivadas do leite.

Após 4 semanas consumindo o kefir, apresentaram melhoras significativas nos seguintes parâmetros: frequência de evacuação, consistência das fezes e redução no uso de laxantes. De forma semelhante, os participantes do estudo demonstraram melhora subjetiva na sensação de “satisfação” com o funcionamento intestinal. Assim, os autores sugeriram que a ingestão de kefir parece ser positiva em melhorar os sintomas e demais manifestações clínicas da constipação.


Ostadrahimi et al. (2015) [30]

Mais um ensaio clínico randomizado, dessa vez avaliando o efeito da ingestão de kefir no controle glicêmico e perfil lipídico de pacientes com diabetes tipo 2. Nesse estudo, adultos com diagnóstico de diabetes tipo 2 foram divididos em dois grupos: ingestão diária de kefir ou de placebo. O grupo placebo consumiu outro tipo de leite fermentado, não muito bem descrito pelos autores do estudo; possivelmente era o doogh, uma bebida tradicional do Iran à base de iogurte (apesar do nome aparentemente não estar escrito de forma correta no artigo, se esse for o caso); ou possivelmente a bebida placebo era apenas um iogurte convencional. De qualquer maneira, o período de intervenção foi de 8 semanas, durante o qual os participantes foram orientados a não alterar outros hábitos de alimentação e saúde.

Depois do período de acompanhamento, foi observado que apenas os indivíduos que consumiram o kefir apresentaram redução significativa nos níveis de glicose e hemoglobina glicada (HbA1c), este último um importante marcador do controle glicêmico em pacientes com diabetes. E a diminuição nos níveis de glicose e HbA1c foram interessantes não apenas do ponto de vista estatístico, mas também do ponto de vista clínico, já que a redução foi de mais de 20 mg/dL para a glicemia e mais de 1% para a HbA1c; normalmente é muito difícil de ver, nos estudos, tratamentos (nutricionais ou farmacológicos) que levam a reduções superiores a 10 mg/dL e 0,5%, respectivamente, para esses parâmetros. Não foram verificadas alterações nos níveis de colesterol, triglicerídeos e peso corporal em nenhum dos participantes. Os autores concluíram, portanto, que a ingestão de kefir pode ser um adjuvante importante no tratamento do diabetes tipo 2.


Fathi et al. (2015) [31]

Nesse ensaio clínico randomizado, mulheres pré-menopausa foram divididas em três grupos: controle, leite e kefir. O grupo controle consumiu uma dieta padrão para manutenção de peso contendo, diariamente, 2 porções de laticínios desnatados. O grupo leite e o grupo kefir consumiram a mesma dieta, só que além das duas porções de laticínios desnatados já incluídas, ingeriram mais 2 porções de laticínios desnatados (total de 4 porções) ou mais 2 porções de kefir (total de 2 porções de laticínios desnatados convencionais + 2 porções de kefir), respectivamente. Para ficar claro: todos os grupos consumiram a mesma quantidade de calorias diariamente, o que foi possível verificar pelo adequado tipo de controle alimentar (diário alimentar) utilizado no estudo.

Após a intervenção, foi observado que o grupo kefir e o grupo leite perderam significativamente mais peso do que o grupo controle, além de terem apresentado maior redução na circunferência da cintura. Com esses resultados, fica claro mais uma vez que as calorias, dependendo da sua fonte e do contexto geral da alimentação, são interpretadas de formas diferentes pelo nosso organismo.


Considerações finais

Como muitos já devem ter lido ou ouvido falar, temos bactérias "benéficas" e bactérias "maléficas" (ou "patogênicas") em nossos intestinos. (Às bactérias "benéficas" também damos o nome de probióticos). Esses termos são derivados de associações já verificadas com efeitos positivos e negativos, respectivamente, de alguns tipos específicos de bactérias que habitam nosso trato gastrointestinal. O que é extremamente interessante, porque a administração oral de algumas bactérias, como a Bifidobacterium lactis, por exemplo, consistentemente demonstram efeitos positivos sobre diversos aspectos da saúde humana [32,33,34,35,36,37,38].

Apesar disso, acredito que podemos não focar em apenas um, dois ou três tipos de bactérias. Não que seja "inútil" pensar em probióticos específicos para condições clínicas e patológicas específicas, mas acho que podemos ir um pouco além. Por quê? Porque apesar de ser um tema extensivamente pesquisado atualmente, ainda sabemos muito pouco sobre como os micro-organismos do intestino influenciam nossa saúde. Além disso, ainda temos muito a aprender sobre como a alimentação, por sua vez, pode modular a própria microbiota intestinal. (Para quem não está familiarizado, o termo microbiota intestinal se refere ao conjunto de micro-organismos que habitam nossos intestinos). 

Assim, ao invés de nos preocuparmos com tipos específicos de micro-organismos no intestino  o que talvez seja muito preciosismo , provavelmente é muito mais interessante focarmos na diversidade de bactérias, fungos e outros seres microscópicos que lá habitam, uma vez que a riqueza de micro-organismos no trato digestório já foi associada ao menor peso, à menor adiposidade corporal e à menor prevalência de doenças metabólicas, como obesidade e diabetes tipo 2 [39].

E por que estou falando tudo isso? Porque, apesar de não termos entrado em tantos detalhes sobre os micro-organismos em si, boa parte dos benefícios potencialmente relacionados ao consumo de kefir provavelmente se deve à modulação da microbiota intestinal, já que este é um alimento produzido a partir da fermentação do leite. E como o kefir é um alimento extremamente rico em dezenas de cepas de bactérias e fungos, o consumo dessa bebida invariavelmente levaria ao aumento na diversidade de micro-organismos presentes em nossos intestinos.

E ressalto mais uma vez: o consumo de kefir muito provavelmente confere os mesmos benefícios observados com a ingestão de iogurte. E talvez ainda mais, uma vez que a diversidade de micro-organismos presente no kefir é superior à encontrada nos iogurtes convencionais!


(O kefir de água não foi mencionado porque a literatura científica é bastante escassa de informações sobre esse tipo de kefir. Para quem se interessar sobre o que a ciência diz sobre ele, veja estudos aqui, aqui e aqui. Apesar de praticamente não haver evidências sobre a influência do kefir de água na saúde, humana ou animal, é bem possível que os benefícios sejam semelhantes aos observados para o kefir de leite).





Referências

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2. Nielsen B, et al. Kefir: a multifaceted fermented dairy product. Probiotics Antimicrob Proteins. 2014;6(3-4):123-35.

3. Leite AM, et al. Microbiological and chemical characteristics of Brazilian kefir during fermentation and storage processes. J Dairy Sci. 2013;96(7):4149-59.

4. Guzel-Seydim ZB, et al. Review: functional properties of kefir. Crit Rev Food Sci Nutr. 2011;51(3):261-8.

5. Ahmed Z, et al. Kefir and health: a contemporary perspective. Crit Rev Food Sci Nutr. 2013;53(5):422-34.

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7. Lopitz-Otsoa F, et al. Kefir: a symbiotic yeasts-bacteria community with alleged healthy capabilities. Rev Iberoam Micol. 2006;23(2):67-74.

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9. Huth PJ, Park KM. Influence of dairy product and milk fat consumption on cardiovascular disease risk: a review of the evidence. Adv Nutr. 2012;3(3):266-85.

10. Aune D, et al. Dairy products and the risk of type 2 diabetes: a systematic review and dose-response meta-analysis of cohort studies. Am J Clin Nutr. 2013;98(4):1066-83.

11. Kratz M, et al. The relationship between high-fat dairy consumption and obesity, cardiovascular, and metabolic disease. Eur J Nutr. 2013;52(1):1-24.

12. Kim J. Dairy food consumption is inversely associated with the risk of the metabolic syndrome in Korean adults. J Hum Nutr Diet. 2013;26 Suppl 1:171-9.

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14. Chen M, et al. Dairy consumption and risk of type 2 diabetes: 3 cohorts of US adults and an updated meta-analysis. BMC Med. 2014;12:215.

15. Dugan CE, et al. Increased dairy consumption differentially improves metabolic syndrome markers in male and female adults. Metab Syndr Relat Disord. 2014;12(1):62-9.

16. Cornier H, et al. Association between yogurt consumption, dietary patterns, and cardio-metabolic risk factors. Eur J Nutr. 2015 [Epub ahead of print].

17. Nestel PJ, et al. Effects of low-fat or full-fat fermented and non-fermented dairy foods on selected cardiovascular biomarkers in overweight adults. Br J Nutr. 2013;110(12):2242-9.

18. Kratz M, et al. Dairy fat intake is associated with glucose tolerance, hepatic and systemic insulin sensitivity, and liver fat but not β-cell function in humans. Am J Clin Nutr. 2014;99(6):1385-96.

19. Nestel PJ, et al. Specific plasma lipid classes and phospholipid fatty acids indicative of dairy food consumption associate with insulin sensitivity. Am J Clin Nutr. 2014;99(1):46-53

20. Santaren ID, et al. Serum pentadecanoic acid (15:0), a short-term marker of dairy food intake, is inversely associated with incident type 2 diabetes and its underlying disorders. Am J Clin Nutr. 2014;100(6):1532-40.

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39. Le Chatelier E, et al. Richness of human gut microbiome correlates with metabolic markers. Nature. 2013;500(7464):541-6.



terça-feira, 18 de agosto de 2015

Low-fat é melhor que low-carb?




Na semana passada foi publicado o "estudo do ano" [1]. Todo mundo tem falado sobre ele. Saiu na mídia, saiu em blogs. Mas o mais impressionante de tudo é que, na maior parte dos casos em que esse estudo foi comentado, o foco foi completamente equivocado, seja por parte daqueles que defendem dietas low-carb, seja pelos que defendem dietas low-fat.

Vale ressaltar de imediato que, em condições reais — onde as pessoas continuam vivendo suas vidas normais —, as dietas low-carb não apenas funcionam como geralmente são superiores às dietas low-fat convencionais. E isso está bem claro na literatura científica [2,3,4,5,6,7,8,9].

O que esse novo estudo se propôs a fazer foi tentar descobrir se realmente é verdadeira a hipótese atual que normalmente é utilizada para explicar os melhores resultados obtidos com as dietas low-carb. E qual é essa hipótese? A de que a insulina seria responsável por regular diretamente o ganho ou a perda de gordura corporal.

A principal lógica por trás das dietas low-carb, segundo seus defensores:
  • A insulina é um hormônio anabólico que faz com que a quantidade de gordura liberada pelos adipócitos (células de gordura) seja reduzida. Ao mesmo tempo, sabemos que a menor ingestão de carboidratos leva à menor produção e secreção de insulina. Logo, uma dieta low-carb seria extremamente efetiva para a perda de peso e gordura corporal porque diminui de forma significativa os níveis de insulina no corpo.

A hipótese faz sentido? Claro que sim. Mas antes de analisarmos os resultados do estudo, ressalto um ponto importante. Essa hipótese da insulina provavelmente não está nem certa e nem errada em sua totalidade. Ela provavelmente está incompleta — simplesmente isso. Incompleta como provavelmente estão todas as demais hipóteses sobre ganho ou perda de peso. Caso alguém realmente soubesse exatamente como funciona a regulação do peso e das reservas de gordura corporal, pelo menos parte do problema da obesidade no mundo já teria sido solucionado (ou estabilizado).


O estudo

Ao todo, 19 indivíduos obesos "saudáveis" participaram do estudo. Durante 5 dias, todos eles ingeriram uma dieta de manutenção de peso, onde cada um deles consumia exatamente a quantidade de calorias necessárias para não haver perda e nem ganho de peso. A dieta de manutenção teve a seguinte composição: 50% carboidratos, 35% gorduras e 15% proteínas.

Depois desses 5 primeiros dias, os indivíduos foram aleatoriamente divididos em dois grupos: low-carb (RC, para "Reduced Carbohydrate") ou low-fat (RF, para "Reduced Fat"). Em cada um dos grupos, cada indivíduo consumiu, durante 6 dias, uma dieta com restrição de 30% de calorias em relação à dieta de manutenção.

Após os 6 dias com as dietas hipocalóricas RC ou RF, todo mundo passou por um período de washout, ou seja, os indivíduos ficaram entre 2 e 4 semanas consumindo novamente suas dietas habituais. Ao término do washout, o experimento foi repetido, mas com cada indivíduo sendo designado ao grupo contrário da primeira fase. A esse processo de cruzamento dá-se o nome de cross-over, onde cada pessoas serve como o seu próprio controle, já que participa de todos os grupos experimentais. O cross-over, quando bem feito — como é o caso do estudo em questão —, é considerado como uma parte importante para se estabelecer o padrão-ouro em ensaios clínicos randomizados.

Uma ilustração de como foi o desenho do estudo:




E o mais importante: o estudo foi estritamente controlado. Além de toda a comida consumida pelos participantes ter sido fornecida pelos pesquisadores, os indivíduos permaneceram numa enfermaria metabólica durante todos os períodos experimentais do estudo — os 5 dias de dieta de manutenção e os 6 dias de dieta hipocalórica low-carb (RC) ou low-fat (RF). Isso significa dizer que eles acordavam, se alimentavam e dormiam o tempo todo dentro da enfermaria metabólica. Dessa forma, foi possível não apenas controlar as atividades dos participantes, mas também medir (e não apenas calcular) o gasto energético de cada um dos indivíduos.

O gasto energético, a oxidação ("queima") de carboidratos e gorduras e a composição corporal dos participantes foram mensurados por técnicas padrão-ouro: água duplamente marcada, calorimetria indireta (em câmara metabólica) e DXA, respectivamente [links todos em inglês]. Além disso, os pesquisadores mediram várias outras coisas: glicemia, beta-hidroxibutirato, colesterol total, LDL-c, HDL-c, leptina, grelina, GIP, GLP-1, insulina, petídeo C, peptídeo YY, adiponectina, cortisol, resistina, PAI-1 etc. Destaque para a insulina e para o petídeo C, ambos importantes para sabermos de que forma cada uma das dietas influencia o metabolismo e a ação da própria insulina. Falaremos sobre eles mais adiante.

E a cereja do bolo foi a composição das dietas. Os pesquisadores modificaram as dietas low-carb (RC) e low-fat (RF), em relação à dieta de manutenção, de forma a isolar somente as variáveis que eles queriam estudar. Para isso, a redução de 30% das calorias na dieta low-fat foi obtida apenas por meio da diminuição na quantidade de gorduras. De forma semelhante, os 30% a menos de calorias da dieta low-carb foram alcançados apenas com a redução de carboidratos. Em outras palavras, a quantidade de proteínas e carboidratos permaneceu exatamente a mesma na dieta low-fat, enquanto que a quantidade de proteínas e gorduras permaneceu a mesma na dieta low-carb. Assim, foi possível comparar diretamente, e de forma extremamente controlada, redução de carboidratos x redução de gorduras, uma vez que os demais macronutrientes permaneceram inalterados.

A composição das dietas:





Os resultados

Primeiro, o resultado mais importante de todos. O resultado que praticamente todo mundo errou ao comentar sobre o estudo: a perda de gordura corporal. Não precisa ser nenhum gênio — e nem mesmo entender muito sobre estatística ou estudos científicos — para ver e interpretar o que aconteceu com gordura corporal dos participantes do estudo. Confira na tabela abaixo:




Não tem mistério. Como pode ser observado na linha destacada em vermelho, ambos os grupos low-carb (RC) e low-fat (RF) perderam gordura corporal. Em números absolutos, essa perda foi 529 g para a dieta low-carb e 588 g para a dieta low-fat. 

Na tabela, podemos ver também que, após cada um desses números, existe um valor de "p". É exatamente esse valor de "p" que indica se houve diferença estatisticamente significativa ou não. Na maioria dos estudos — como é o caso desse estudo também —, p < 0,05 indica que houve diferença estatística, enquanto que p > 0,05 indica o contrário. Ao observarmos cada um dos valores de "p" que sucedem a perda de gordura corporal de cada um dos grupos, é possível verificar que ambos são menores que 0,05. Isso significa que em relação ao baseline (ponto zero, o começo do estudo), tanto a dieta low-carb como a dieta low-fat resultaram em perda de gordura corporal. O valor de "p" indicou diferença estatística após os 6 dias que os indivíduos passaram consumindo cada uma das dietas.

Na última coluna, podemos ver que existe um terceiro valor de "p". E qual é a diferença dele para os demais? Ao invés de comparar as diferenças dentro do mesmo grupo, o terceiro valor de "p" compara as diferenças entre os grupos. Ou seja, esse valor de "p" vai indicar se existiu ou não diferença estatística entre os grupos low-carb e low-fat. E qual foi o valor do "p" que compara os grupos? Foi 0,78. Portanto, podemos afirmar categoricamente que não houve diferença na perda de gordura corporal entre os grupos

A perda de gordura corporal foi igual. Simples assim.

Mas daí vem a grande pergunta: por que todo mundo disse que o grupo low-fat (RF) perdeu mais gordura do que o grupo low-carb (RC)?


O grande problema na interpretação do estudo

Temos duas possibilidades que podem explicar por que quase todo mundo interpretou de forma equivocada esse estudo:

1) Falta de conhecimento. Seria o caso de uma interpretação errada dos dados por parte de quem não tem os requisitos ideias para ler um artigo científico. É aqui que a mídia normalmente se encaixa; às vezes por querer falar sobre o que não entende, e outras vezes por confiar na opinião de "especialistas" (e muitas vezes na opinião do próprio autor do estudo, que pode ter uma opinião enviesada em vários sentidos).

2) Desonestidade. Essa normalmente vem junto com o viés de confirmação, que nada mais é do que interpretar os fatos de acordo com suas ideias pré-concebidas sobre determinado assunto. Ou seja, se a maioria das pessoas — como boa parte da mídia e dos pesquisadores — ainda acha que, por exemplo, reduzir os carboidratos da dieta é algo ruim, qualquer resultado que minimamente dê margem a esse tipo de interpretação terá uma fortíssima tendência a ser visto ou percebido de acordo com a visão pré-estabelecida da pessoa. Só que o viés de confirmação pode ser conscientemente percebido ou não. Se não for, não podemos dizer que é desonestidade. Porém, se o indivíduo, de forma consciente, tende a interpretar tais fatos simplesmente para confirmar suas crenças — muitas vezes pelo receio de qual seria a repercussão de admitir que está "errado" —, é possível dizer que há desonestidade no caso.

De qualquer maneira, a conclusão de que a dieta low-fat (RF) foi superior à dieta low-carb (RC), no que diz respeito à perda de gordura corporal, foi tirada a partir da última linha da mesma tabela apresentada acima. Essa última linha diz respeito aos resultados do "balanço cumulativo de gordura", como pode ser visto na imagem:




Observando os resultados, fica bem claro que a dieta low-fat levou a um "balanço" de gordura mais negativo em relação à dieta low-carb: -463 g x -245 g. E o valor de "p" < 0,0001, na comparação entre os grupos (última coluna), mostra que houve diferença estatística.

Entretanto, é preciso entender o que é esse "balanço cumulativo de gordura" para tirarmos as devidas conclusões. Aqui também não tem segredo: os pesquisadores basicamente pegaram a ingestão de gordura e subtraíram da oxidação ("queima") de gordura de cada um dos grupos. O grupo low-carb até oxidava mais gordura, mas como ele também ingeria mais gordura, o "balanço" foi menos negativo. Ao contrário, o grupo low-fat consumia tão pouca gordura que, mesmo oxidando menos gordura, seu "balanço" foi mais negativo.

Só que existe um grande problema nisso tudo. Nosso corpo não funciona com 100% de precisão e muito menos como uma ciência exata. Ao calcular o "balanço" de gordura, os pesquisadores estão considerando que a gordura ingerida por meio da dieta tem apenas dois possíveis destinos: ser utilizada como energia ou ser armazenada. Mas isso está fundamentalmente errado. E podemos exemplificar isso de uma maneira muito simples. O principal componente da membrana de todas as nossas células são justamente as gorduras. E o nosso corpo está a todo momento sintetizando novas células; portanto, estamos continuamente utilizando a gordura corporal e a gordura da dieta como substratos estruturais para as nossas células.

Os autores mencionam que as metodologias de avaliação da composição corporal, que eles fizeram por DXA — técnica considerada padrão-ouro —, não são muito sensíveis para medir alterações agudas, num curto espaço de tempo, da gordura corporal. Essa foi a justificativa deles para calcular o "balanço" de gordura e utilizá-lo como principal variável para medir a perda de gordura corporal no estudo, em detrimento da medição direta por DXA.

O argumento até que é justo. É verdade que nem mesmo a medição da gordura corporal por DXA é boa o suficiente num espaço de tempo tão curto como os 6 dias em que os participantes passaram consumindo as dietas low-fat e low-carb. Mas apenas calcular o tal "balanço" de gordura também não significa praticamente nada. O cálculo obtido através da calorimetria indireta tenta prever qual será a perda de gordura em cada grupo experimental, mas de forma alguma pode ser utilizado como parâmetro definitivo para avaliar se houve ou não perda de gordura corporal.

E, nesse contexto, podemos inclusive explorar a falha do conceito "clássico" das calorias. Se o cálculo utilizado pelos autores do estudo realmente fosse fidedigno, ele teria que corresponder a um valor muito próximo ao obtido por outro cálculo: da fórmula "clássica" das calorias; porém, eles são diferentes. Para visualizar isso, vamos considerar o grupo low-fat. Durante os 6 dias em que os indivíduos passaram consumindo essa dieta, o déficit calórico total foi de 822 kcal por dia, ou 4932 kcal pelos 6 dias. (Para chegar a esses valores eu simplesmente subtraí 2740 de 1918, os valores energéticos das dietas de manutenção e low-fat, respectivamente). Segundo a teoria das calorias, o seu organismo deve gastar entre 7700 e 9000 kcal por dia para perder 1 kg de gordura corporal. Porém, o valor de 4932 kcal equivalente aos 6 dias de dieta low-fat corresponderia a um "saldo negativo" total de 548 a 641 g de gordura corporal, ao invés dos 463 g referidos pelo cálculo dos autores.


A questão da ineficiência metabólica

Digamos que a dieta low-fat tivesse de fato "vencido" a dieta low-carb nesse estudo. O que poderia explicar a ocorrência desse fenômeno, tendo em vista que a quantidade de calorias consumidas foi exatamente a mesma nos dois grupo?

Um dos motivos pelos quais as dietas low-carb podem proporcionar maior perda de peso do que as dietas low-fat, mesmo que ambas tenham teoricamente a mesma quantidade de calorias, é por uma "vantagem metabólica". Essa vantagem diz respeito ao fato de que, devido a alguns mecanismos ineficientes de utilização dos macronutrientes (proteínas, carboidratos e gorduras) para produção de ATP — como a conversão de aminoácidos em glicose, pela relativa escassez de glicose decorrente da baixa ingestão de carboidratos —, uma dieta low-carb apresentaria menor eficiência (ou maior ineficiência) do que dietas mais "balanceadas" [10]. Ou seja, o "desequilíbrio" entre os nutrientes acabaria resultando num estado metabólico em que não se consegue aproveitar ao máximo tudo que é obtido da alimentação.

É claro que, evolutivamente, nossa espécie se desenvolveu de forma a ser a mais eficiente possível no que diz respeito à obtenção, uso e armazenamento de calorias e energia. Porém, é muito provável que diferentes composições de carboidratos, proteínas e gorduras na alimentação levem o nosso organismo a ser um pouco mais ou um pouco menos eficiente em lidar com essas calorias.

Além disso, é completamente plausível que uma dieta muito low-fat (como a utilizada no estudo em questão), assim como as dietas low-carb, possam também levar o organismo a um estado de ineficiência metabólica. Portanto, essa seria uma possível explicação se a dieta low-fat do estudo realmente tivesse sido superior à dieta low-carb.

Dois texto interessantes, com visões de certa forma opostas, também comentaram essa questão da ineficiência metabólica. Caso queira conferir, veja aqui (em inglês) e aqui (em português).


A hipótese da insulina

Ok, já vimos que não houve diferença na perda de gordura corporal entre os grupos. Porém, outro resultado importante põe em cheque a hipótese da insulina. Para entender melhor o porquê disso, vamos observar a figura abaixo:




O gráfico mostra os níveis de peptídeo-C na urina de 24 horas (urina coletada ao longo de um dia completo) dos participantes de cada grupo. Antes da insulina ser devidamente secretada, ela se chama pró-insulina, que nada mais é do que uma molécula de insulina ligada a uma molécula de peptídeo-C. Enquanto as moléculas estiverem ligadas, a insulina não pode ser liberada. Porém, a partir do momento em que ocorre a separação das moléculas, tanto a insulina como o peptídeo-C caem na circulação sanguínea. Assim, o peptídeo-C, nesse contexto, nada mais é do que um marcador da secreção de insulina. (Não se mede diretamente a "insulina de 24 horas" porque, para isso, os participantes teriam que ficar o dia todo sentados tendo o sangue coletado).

A imagem abaixo, em alemão, mostra a relação entre insulina e peptídeo C. O termo "blut" significa "sangue".




A partir dos dados de peptídeo-C apresentados no gráfico, fica claro que houve redução na secreção de insulina no grupo low-carb (RC), mas não no grupo low-fat (RF). Apesar disso, a perda de gordura corporal foi a mesma entre os grupos. Isso significa dizer que, mesmo com uma redução na secreção de insulina, a dieta low-carb não foi capaz de induzir maior perda de gordura corporal do que a dieta low-fat.

Porém, temos duas ressalvas importantes:

1) O estudo foi muito curto. Talvez não tenha havido tempo suficiente para que a redução na secreção de insulina, característica das dietas low-carb, tivesse o efeito esperado sobre a gordura corporal dos participantes. E é possível que isso seja verdade se observarmos o que aconteceu com a oxidação total de gordura em cada um dos grupos. Na imagem abaixo, dá pra perceber que os participantes consumindo a dieta low-carb (RC) "queimavam" muito mais gordura do que os indivíduos da dieta low-fat (RF). Isso, no médio ou longo prazo, poderia resultar numa maior perda de gordura corporal — principalmente porque boa parte desse maior uso de gordura como fonte de energia é induzida pela menor secreção de insulina pelas dietas low-carb. 




2) A dieta low-carb não foi low-carb "de verdade". Quando os pesquisadores foram ajustar a redução de 30% de calorias para cada uma das dietas, a partir da dieta de manutenção (50% carboidratos, 35% gorduras e 15% proteínas), eles fizeram com que a composição final de cada uma delas ficasse da seguinte forma:




A dieta low-fat, na prática, foi uma dieta muito low-fat (7% das calorias da forma de gorduras). A dieta low-carb, por sua vez, foi uma dieta apenas moderadamente low-carb (29% das calorias na forma de carboidratos). Nesse caso, o fato da dieta low-carb não ter sido low-carb "de verdade" poderia fazer com que a redução na secreção de insulina não tivesse sido suficiente para demonstrar sua superioridade. O que é totalmente plausível, tendo em vista que os valores absolutos e relativos ingeridos de carboidratos na dieta low-carb, 140 g e 29%, respectivamente, não equivalem ao preconizado pela maior parte dos defensores das dietas low-carb.

A justificativa para termos uma dieta muito low-fat contra uma dieta moderadamente low-carb é que essa era a única maneira de fazer com que apenas um macronutriente (carboidrato ou gordura) de cada dieta fosse alterado em relação à dieta "original" de manutenção — exatamente para que houvesse o máximo de controle no estudo e para que apenas uma variável de cada dieta fosse alterada. Esse é novamente um argumento justo, mas um pouco sem sentido. Sem sentido porque, ao final das modificações, tanto a quantidade de carboidratos como a quantidade de gorduras são diferentes entre as dietas low-carb e low-fat.

Se compararmos a dieta low-fat à dieta de manutenção, apenas a quantidade de gorduras foi alterada. A mesma lógica vale para dieta low-carb: se ela for comparada à dieta de manutenção, apenas a quantidade de carboidratos foi modificada. Mas isso é praticamente irrelevante. Se, ao final do estudo, as principais análises foram feitas comparando a dieta low-fat à dieta low-carb, o mais importante de tudo é saber de que maneira essas dietas diferiram uma da — e não quais foram as diferenças de cada uma em relação à dieta "original" de manutenção. E, querendo ou não, as dietas low-fat e low-carb diferenciaram-se em duas coisas: carboidratos e gorduras.

Estou tocando em detalhes nesse ponto exatamente para argumentar que a justificativa dos autores não faz tanto sentido. Afinal de contas, se as dietas low-carb e low-fat inevitavelmente iriam diferir tanto na quantidade de gorduras como na quantidade de carboidratos — já que é impossível não ser dessa forma, dada a mesma quantidade de calorias em ambas as dietas —, por que não comparar uma dieta muito low-fat (como de fato foi) a uma dieta muito low-carb? Isso provavelmente seria o ideal.


Considerações finais

Quando avaliamos os resultados que correspondem à medida direta da gordura corporal, verificamos que não houve diferença na perda de gordura entre os grupos low-carb e low-fat. Por outro lado, se considerarmos o cálculo matemático que tentou extrapolar os resultados, houve sim maior perda de peso com a dieta low-fat. Porém, essa é uma forma extremamente imprecisa devido às explicações apresentadas anteriormente.

Por outro lado, o estudo mostrou de forma interessante que, em condições extremamente controladas, a ingestão total de energia (calorias) parece ser mais relevante do que a composição da dieta (menos gorduras ou menos carboidratos) para induzir perda de gordura corporal. Só que é justamente nesse ponto que as dietas low-carb ainda se mostram superiores às dietas low-fat. A redução espontânea no apetite é uma das características mais marcantes das dietas low-carb, e um dos fatores mais cruciais — talvez até o mais importante — para que elas induzam maior perda de peso e gordura corporal do que as dietas low-fat.

Sem contar que a dieta low-carb utilizada no estudo (140 g/dia de carboidratos) é bem fácil de ser seguida, enquanto que para as dietas low-fat o contrário é verdade. Se até mesmo as dietas low-fat de 20-30% das calorias na forma de gorduras, utilizadas em todos os estudos, já são difíceis de ter boa adesão, imagina uma dieta low-fat com apenas 8% das calorias na forma de gorduras (17 g/dia de gorduras). Isso é muito importante no contexto da vida real: se o indivíduo não conseguir seguir as orientações que foram dadas a ele, a probabilidade de sucesso é muito baixa.

E mesmo que a hipótese da insulina tenha sido seriamente questionada por esse estudo, ainda assim as dietas low-carb normalmente se mostram mais eficazes que dietas low-fat convencionais para a perda de peso e melhora de parâmetros metabólicos [2,3,4,5,6,7,8,9], como mencionado no começo desse texto. E isso é o que mais pesa no final. Para algumas pessoas, por questões metabólicas (em breve escreverei sobre isso), uma dieta low-fat pode ser tão eficaz quando uma dieta low-carb — ou até mais eficaz, dependendo do grau de adesão à dieta.

Acima de tudo, a individualidade de cada pessoa — incluindo os contextos biológico, social, cultural etc., sempre muito particulares — são sempre extremamente importantes de serem levados em consideração.

Não que exista, ou precise existir, um "vencedor". Mas não foi dessa vez que a dieta low-fat foi superior à dieta low-carb.





Referências

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