A ideia de que deveríamos
consumir dietas com baixa quantidade de gordura saturada se baseia em dois
argumentos principais que estão intimamente ligados. O primeiro diz respeito ao
suposto efeito negativo que esse nutriente tem sobre a saúde; nesse caso, a
simples presença de alimentos fontes de gordura saturada já não seria algo
desejável. O segundo, como consequência do anterior, implica na seguinte
lógica: quanto menor for o consumo de gordura saturada, um nutriente com potencial
deletério, melhor será nossa saúde; ou, se o consumo de gordura saturada
representar apenas X% das calorias da dieta, não teremos muitos problemas.
De fato, se tivéssemos a
oportunidade de perguntar às pessoas que defendem a menor ingestão de gordura
saturada o porquê desse posicionamento, uma resposta comum provavelmente seria
algo como “Nossa população consome muita
gordura saturada, e (em excesso) esse nutriente pode causar problemas de saúde”.
Isso quer dizer que,
considerando a ideia enraizada no conhecimento popular de que a gordura
saturada faz mal, a percepção geral é que o consumo desse nutriente é elevado
ou está em “excesso” das nossas necessidades — e por isso precisa ser
reduzido.
Mas será que o nosso
consumo de gordura saturada é realmente excessivo? Será que a “dieta ocidental”* é
mesmo rica nesse nutriente?
*O termo dieta ocidental, nesse texto, engloba o padrão alimentar predominante não apenas no
ocidente (incluindo o Brasil), mas na maioria dos países com moderado a elevado
grau de desenvolvimento econômico e social, medidos por indicadores tradicionalmente
utilizados para esses fins. Nesses países, a dieta ocidental possui as
seguintes características: ingestão elevada de produtos processados e
refinados; consumo relativamente alto de alimentos de origem animal, incluindo
principalmente carnes e laticínios; e ingestão relativamente baixa de frutas e
hortaliças.
Para analisarmos melhor
essa questão, podemos desmembrar as perguntas acima em três partes:
1)
Como se compara a ingestão de gordura saturada por populações que consomem uma
dieta ocidental em relação a populações que não consomem tal dieta?
2)
Como foi a tendência de consumo de gordura saturada, nas últimas décadas,
dentro dos próprios países do “ocidente”? Houve um aumento na ingestão desse
nutriente que poderia explicar o aumento na prevalência de doenças
crônicas — especialmente de doenças cardiovasculares?
3)
Se considerarmos as populações que mais consomem ou consumiram gordura saturada
no mundo, como essa ingestão se compara ao de países que possuem o padrão da dieta ocidental? O consumo verdadeiramente elevado de gordura
saturada está associado ao desenvolvimento de doenças crônicas?
Com isso em mente, vejamos
o que os fatos nos mostram.
Gordura saturada nos alimentos
Como mencionei acima, uma
das principais características daquela que é considerada a dieta ocidental das
populações mais afluentes é uma presença relativamente alta de alimentos de
origem animal. Por esse motivo, pode ser até intuitivo achar que essas dietas são
ricas em gordura saturada, uma vez que os alimentos de origem animal são de fato boas
fontes desse nutriente.
Porém, mesmo considerando
que carnes, ovos e laticínios, assim como seus derivados, contêm uma quantidade bastante razoável de
gorduras saturadas em suas composições, a percepção que temos do teor desse
nutriente nesses alimentos normalmente é um pouco distorcida.
A maioria dos cortes de carne
bovina possui essencialmente as mesmas quantidades de gorduras saturadas e de
gorduras monoinsaturadas. Em carnes suínas, por outro lado, a quantidade de
gorduras monoinsaturadas na maioria das vezes é até superior à quantidade de
gorduras saturadas. Já para as carnes de aves, as concentrações de gorduras
saturadas são ainda menores do que nesses dois outros tipos, uma vez que elas
possuem uma tendência de acumular também gorduras poli-insaturadas em suas
composições (o que também é verdade, em menor grau, para as carnes suínas).
Os ovos, tanto de galinha
como de codorna, também possuem mais gorduras monoinsaturadas do que saturadas
em suas composições.
Abaixo, alguns exemplos
das concentrações das três grandes classes de gorduras encontradas em carnes e
ovos (a cada 100 g de alimento):
Assim, é possível perceber que,
para carnes e ovos, em geral o teor de gordura saturada corresponde
a 50% ou menos da quantidade total de gordura desses alimentos. As
monoinsaturadas, e não as saturadas, normalmente são o principal tipo de
gordura encontrada nesses alimentos.
E os peixes? Os peixes
também são carnes, mas resolvi separá-los nessa análise para desmistificar
outra questão: a de que eles são saudáveis por conterem, além de ômega-3
(alguns peixes, mas não todos), menor quantidade de gorduras saturadas e maior
teor de gorduras poli-insaturadas.
É verdade que muitos
peixes possuem um baixo teor de gordura total quando comparados a outros
animais, mas, proporcionalmente, a concentração de gordura saturada não é
pequena. Exemplos comumente consumidos, como atum, pescada, sardinha e merluza,
possuem maiores quantidades de gorduras saturadas e monoinsaturadas do que de
gorduras poli-insaturadas em suas composições. Mesmo as exceções, como o salmão — que possui mais gorduras poli-insaturadas do que os outros dois tipos —,
ainda sim não possui baixa quantidade de gorduras saturadas (e nem de monoinsaturadas) quando comparada ao teor de poli-insaturadas.
Tipos e quantidades de
gorduras em peixes (por 100 g de alimento):
Para os laticínios, a
história é um pouco diferente. A composição dos leites e derivados pode variar
bastante entre as espécies animais, então não é possível fazer uma
generalização. Considerando os laticínios da vaca, que correspondem ao
principal tipo consumido no mundo, podemos afirmar que esses são alimentos mais
ricos em gorduras saturadas do que as carnes, ovos e peixes: cerca de 2/3 (ou
até mais) de toda a gordura presente neles corresponde a gorduras
saturadas.
Assim, fica a pergunta: é verdade que os alimentos de origem animal apresentam grande quantidade de gordura saturada?
Depende de qual perspectiva estamos avaliando a questão. Se compararmos o teor de gordura saturada de alimentos de origem animal à quantidade presente na maioria dos vegetais, mesmo nos ricos em gordura total, podemos afirmar com segurança que, no geral, os alimentos de origem animal são sim ricos em gordura saturada.
Além disso, podemos considerar o fato de que grande parte dos alimentos de origem animal possuem mais gorduras monoinsaturadas do que saturadas em sua composição. Por esse lado, olhando apenas para os tipos de gordura presentes em cada alimento individualmente, os alimentos de origem animal não são tão ricos assim em gordura saturada. Mesmo assim, a grande presença de gorduras monoinsaturadas não é uma característica particular dos alimentos de origem animal, porque é fácil encontrar na natureza alimentos de origem vegetal que também são ricos nesse tipo de gordura: azeitona, abacate, diversas sementes e oleaginosas. Portanto, considerando que a maior concentração de gordura saturada nos alimentos de origem animal é uma característica inerente a eles — não muito comum em alimentos vegetais —, temos mais um motivo para considerá-los como fontes importantes desse nutriente.
Assim, fica a pergunta: é verdade que os alimentos de origem animal apresentam grande quantidade de gordura saturada?
Depende de qual perspectiva estamos avaliando a questão. Se compararmos o teor de gordura saturada de alimentos de origem animal à quantidade presente na maioria dos vegetais, mesmo nos ricos em gordura total, podemos afirmar com segurança que, no geral, os alimentos de origem animal são sim ricos em gordura saturada.
Além disso, podemos considerar o fato de que grande parte dos alimentos de origem animal possuem mais gorduras monoinsaturadas do que saturadas em sua composição. Por esse lado, olhando apenas para os tipos de gordura presentes em cada alimento individualmente, os alimentos de origem animal não são tão ricos assim em gordura saturada. Mesmo assim, a grande presença de gorduras monoinsaturadas não é uma característica particular dos alimentos de origem animal, porque é fácil encontrar na natureza alimentos de origem vegetal que também são ricos nesse tipo de gordura: azeitona, abacate, diversas sementes e oleaginosas. Portanto, considerando que a maior concentração de gordura saturada nos alimentos de origem animal é uma característica inerente a eles — não muito comum em alimentos vegetais —, temos mais um motivo para considerá-los como fontes importantes desse nutriente.
No entanto, sabe quem são
os alimentos mais ricos em gorduras saturadas no mundo? Os óleos e gorduras vegetais
de frutos tropicais, como coco, palma e cacau, com concentrações de gordura
saturada que podem variar de 60 a 90% da quantidade total de gordura presente nesses alimentos, dependendo da época e da região onde são produzidos. Por isso, é possível
afirmar que os alimentos de origem animal, comumente classificados como ricos
em gorduras saturadas, quando considerados individualmente, são na verdade apenas fontes razoáveis ou moderadas desse
nutriente — com concentrações consideravelmente menores do que se imagina,
principalmente quando comparados a alguns frutos tropicais.
Por outro lado, vale
ressaltar que os alimentos de origem animal, mesmo com uma quantidade
proporcional de gordura saturada inferior à dos óleos tropicais, normalmente
são mais representativos na dieta da maioria das pessoas: é muito mais comum
consumirmos diariamente quantidades mais significativas de carnes e laticínios,
por exemplo, do que de óleo de palma ou manteiga cacau — ou até mesmo de óleo
de coco, apesar de seu consumo ter aumentado substancialmente nos últimos anos.
Assim, apesar de os alimentos de origem animal não possuírem um teor
proporcional tão grande de gorduras saturadas, quando comparado à concentração
nos óleos desses frutos tropicais, em números absolutos a quantidade ingerida
de gordura, total e saturada, tende a ser superior para esses alimentos.
Por esses motivos,
principalmente considerando a participação quantitativa dos alimentos fontes de
gordura saturada em nossas dietas, a preocupação que muitas pessoas têm em
diminuirmos o consumo desse nutriente ainda parece ser algo legítimo quando
visto por essa perspectiva.
Mas a história vai muito
além do fato de a gordura saturada animal ser mais
representativa que a gordura saturada vegetal. Precisamos explorar mais para
entendermos se o que consumimos é realmente "excessivo", e se toda a preocupação é necessária ou justificável,
Consumo de gordura saturada por diferentes populações
Agora, falando realmente
sobre consumo, a primeira coisa que precisamos saber é: quanto de gordura
saturada as populações que possuem uma dieta ocidental de fato ingerem? Para
simplificar a história, trabalharemos primeiramente apenas com dois países:
Brasil e Estados Unidos.
Segundo a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), o inquérito mais representativo que temos para o consumo de alimentos e nutrientes no Brasil, a ingestão média de gordura saturada pelo
brasileiro foi de 18,7 g/dia nos anos 2008 e 2009. Especificamente para as
mulheres, a média foi de 17,2 g/dia, enquanto que para os homens foi de 20,3
g/dia.
É natural que, em números
absolutos, as mulheres apresentem uma ingestão um pouco menor de gordura
saturada (e de outros nutrientes), tendo em vista que elas, em geral, consomem um volume alimentar total
que também é inferior. Tanto é que, em percentuais, as gorduras
saturadas representaram basicamente o mesmo para o total das calorias em ambos
os sexos: 9,2% das kcal ingeridas pelos homens e 9,7% das kcal ingeridas pelas
mulheres.
Podemos comparar esses
valores aos obtidos na POF anterior, conduzida entre 2002 e 2003.
Apesar de não fornecer dados em valores absolutos e nem estratificá-los por
gênero, foi verificado que a gordura saturada, nesses anos, contribuía para
aproximadamente 8,6% do total da ingestão calórica estimada dos brasileiros. Assim, nota-se que
houve um aumento nominal de 1% nas calorias provenientes de gorduras saturadas
entre 2002-2003 e 2008-2009.
Considerando a mesma
ingestão energética média entre esses anos, que seria de aproximadamente 1780
kcal/dia (média entre homens e mulheres na POF 2008-2009), o aumento, em
números absolutos, seria de 17,0 para 18,7 g/dia de gorduras saturadas. Ou
seja, o aumento de 1% no consumo, de 2002-2003 para 2008-2009, corresponde à ingestão de apenas 1,7 g/dia a mais de
gordura saturada para a população brasileira.
Para o Brasil, não temos
muito dados além desses. Para os Estados Unidos, porém, as informações são
bem mais ricas.
O USDA, órgão
norte-americano que cuida de assuntos relacionados a agricultura e alimentação
nos Estados Unidos, coleta dados sobre a disponibilidade de alimentos desde o
início do século XX.
A tabela abaixo, retirada
do documento Nutrient Content of theU.S. Food Supply, 1909-2004, faz um belo resumo desses dados.
Deixei apenas as informações referentes a calorias, gorduras e colesterol, mas
a tabela na íntegra pode ser visualizada no link:
Pode ser observado que a quantidade
de gordura saturada disponível para consumo foi praticamente a mesma em todos os anos entre 1909
e 2004; são quase 100 anos sem alterações. Nem mesmo no período (décadas de 30
a 60) de epidemia de doenças cardiovasculares nos Estados Unidos, que são os principais problemas
atribuídos ao consumo “excessivo” de gordura saturada, a disponibilidade de
gordura saturada para consumo aumentou. Essa evidência sozinha, por
mais simples que pareça, seria suficiente para seriamente questionar qualquer
associação entre gordura saturada e doenças cardiovasculares.
Vale ressaltar que esses dados
do USDA são de disponibilidade de alimentos e nutrientes, e não de consumo.
Nem tudo que está disponível, como alimentos produzidos ou importados, é consumido. Por isso, apenas com esses
dados, não é possível sabermos exatamente qual é o consumo médio de gordura
saturada ao longo desses anos para a população dos Estados Unidos. Mesmo assim,
é possível inferir algo interessante: como a disponibilidade foi essencialmente
a mesma, é muito provável que a ingestão média, ao longo dos anos, praticamente não tenha variado.
E de fato foi isso que
aconteceu, porque também temos disponíveis as informações sobre o consumo estimado de diversos nutrientes. Nos
Estados Unidos, há um inquérito nacional conduzido anualmente, desde 1999,
sobre saúde e nutrição: o NHANES. Para o consumo de nutrientes, os
dados disponíveis vão de 2001 a 2012.
Para facilitar a
visualização dos dados, que estão contidos em arquivos dispersos, compilei as
informações sobre gordura saturada na tabela abaixo, considerando a média de consumo de mulheres e homens adultos:
É possível perceber que,
tanto em quantidades absolutas como em percentual do total de calorias, a população dos Estados Unidos parece ingerir mais gordura saturada que os
brasileiros em qualquer ponto desse período de 12 anos, variando de 25,5 a 27,8
g/dia (10,9% a 11,6% das kcal).
Mas o mais interessante
de tudo é quando analisamos a tendência global de consumo de gordura saturada.
Na análise sistemática mais completa já realizada, publicada em 2014, incluindo dados
de pesquisas populacionais de 266 regiões globais, Micha e colaboradores verificaram que
a média de consumo mundial de gordura
saturada corresponde a 9,4% das calorias totais ingeridas.
A maior parte dos países
e regiões do mundo consumia, nesse período, entre 7% e 14% das calorias na forma
de gordura saturada. Portanto, vemos que Brasil e Estados Unidos, assim como a
maioria das outras nações, possuem uma ingestão de gordura saturada que não
apenas está de acordo com ou próximo do que normalmente é preconizado, mas
também que, de maneira geral, não existe uma variação tão grande entre os
países ao redor do globo — tenham ou não tenham a dieta ocidental como padrão alimentar.
Além disso, esse estudo
revelou algo ainda mais interessante. De 1990 a 2010, praticamente não houve
alteração alguma, em lugar nenhum do mundo, na média de ingestão de gordura
saturada por países e suas regiões — exatamente como mencionado anteriormente
para o Brasil e para os Estados Unidos. Ou seja, cada país parece ter continuado a consumir a mesma quantidade de gordura saturada ao longo desse período de 20 anos:
O que é um consumo ‘elevado’ de gordura saturada?
O termo “excessivo”
normalmente é usado quando queremos nos referir ao fato de que um nutriente ou
substância encontra-se em quantidades que vão além daquilo que é ideal ou
sustentável para o corpo, com a possibilidade de causar danos ou prejuízos.
Sendo assim, se alguém afirma que o consumo de gordura saturada é “excessivo” (em
uma dieta ou refeição, por exemplo), essa pessoa passa a ideia de que está se
referindo a uma quantidade que pode levar a problemas de saúde.
Como a discussão aqui, por enquanto, não
é especificamente sobre os efeitos da gordura saturada sobre a saúde (apesar
dessa questão ser inerente ao texto), acredito que seja melhor falarmos
sobre consumo elevado em vez de consumo “excessivo”. Mesmo sendo muitas
vezes usados como sinônimos, principalmente no contexto de nutrientes que são
considerados “ruins”, como a própria gordura saturada, esses termos não são
equivalentes.
O termo “elevado” implica
apenas que alguma coisa é maior que outra; elevado não significa excesso. Os
Estados Unidos possuem um consumo (26,5 g/dia) mais elevado de gordura saturada
que o Brasil (18,7 g/dia), mas isso por si só, de forma alguma, quer dizer que
a ingestão desse nutriente pelos norte-americanos é excessiva.
Se não estivermos falando
do impacto que a gordura saturada tem na saúde, não podemos falar sobre
“excesso”. E, mesmo que estivéssemos discutindo especificamente os efeitos na
saúde, como não existem evidências concretas de que a gordura saturada faz mal, ainda sim a troca de termos seria
desejável.
Sendo assim, como saber,
por exemplo, se o consumo de gordura saturada pela população dos Estados Unidos
é realmente elevado? Em relação ao Brasil certamente é, mas e em relação à ingestão de
outras populações?
Para responder a essa
pergunta, podemos inicialmente olhar para a figura da ingestão global de
gordura saturada nas diversas regiões do mundo entre os anos de 1990 e 2010,
mais acima. Usando os Estados Unidos como referencial de dieta ocidental,
rapidamente percebemos que diversas regiões do mundo possuem consumo superior
de gordura saturada: África Central e Ocidental, Ásia Central, Europa, Oceania
e Ilhas do Pacífico.
Isso é muita gente. Só com essa imagem é possível perceber que o consumo de gordura saturada nos Estados Unidos não é tão alto assim.
Mas e essas outras regiões com ingestão superior à dos Estados Unidos? Será que a ingestão dessas populações é tão elevada assim? A gordura saturada consumida pela Oceania, que chega a quase 24% das calorias diárias, é realmente uma quantidade elevada desse nutriente?
Mas e essas outras regiões com ingestão superior à dos Estados Unidos? Será que a ingestão dessas populações é tão elevada assim? A gordura saturada consumida pela Oceania, que chega a quase 24% das calorias diárias, é realmente uma quantidade elevada desse nutriente?
E é aqui vem a parte mais
interessante.
Se quisermos falar de
populações que possuem uma ingestão verdadeiramente alta de gordura saturada,
podemos falar dos Maasai ou dos Samburu, por exemplo.
Esses grupos são
estudados desde a década de 60, com o objetivo de entender como o elevado
consumo de gordura animal, rica em ácidos graxos saturados, se relaciona com a
saúde, principalmente a cardiovascular. O interesse nelas surgiu justamente na
época em que se começou a desconfiar da gordura saturada como
causas de doenças cardíacas e derrame.
Enquanto Ancel Keys, Laurence Kinsell e outros defendiam veementemente que a gordura saturada na dieta era um
grande problema, apesar de haver muitas evidências contrárias a essa ideia,
outros pesquisadores eram mais céticos. Ao contrário do que muitos fizeram, eles
buscaram pela falseabilidade dessa hipótese, como proposto por
Karl Popper.
Por sobreviverem do
pastoreio, a característica mais marcante observada à época era o
impressionante consumo de leite dessas populações. Dependendo da idade e do
sexo do indivíduo, assim como das estações do ano, o consumo poderia ir de três até sete litros por dia. O consumo médio de
calorias para essas populações foi documentado em aproximadamente 3000 kcal/dia em estudos diversos, mas podia chegar a 5000 kcal/dia em homens, dependendo da idade e, principalmente, da época do ano — que determinava, em grande parte, a oferta de
leite disponível.
O leite dos animais
criados nessas regiões do Quênia possui cerca de 5,6% de gordura em sua composição. Com uma ingestão média de leite
nessas populações de 3 litros para os jovens e de 6 litros para os homens
adultos, temos um consumo equivalente a, respectivamente, 168 e 336 g/dia de gordura total na dieta desses indivíduos — proveniente apenas do leite.
Considerando que 73,6% da gordura presente no leite dessa região é composta por ácidos graxos saturados, chegamos a uma ingestão de gordura saturada de mais de 120 e 240 g/dia para
jovens e homens adultos, respectivamente. Comparados ao resto do mundo, com uma
ingestão que normalmente não passa de 30 ou 40 g/dia (nos países com maior consumo), esses
sim são valores realmente elevados de gordura saturada na dieta.
E tem um detalhe interessante: caso alguém esteja se perguntando, os Maasai e os Samburu possuem incidências e prevalências extremamente baixas de doenças
cardiovasculares, além de baixos níveis sanguíneos de colesterol total e
LDLc (não que essa parte final seja realmente importante, porque os desfechos verdadeiramente relevantes — as doenças cardiovasculares em si — praticamente não ocorrem nessas populações).
Mas essa história não se resume ao Quênia.
Mas essa história não se resume ao Quênia.
Temos também o pessoal de
Tokelau, situada na Polinésia. O coco era
um alimento tão importante para os habitantes da ilha que era consumido em
todos os tipos de refeições e com os mais diversos alimentos: fruta-pão, peixes, polvo, fruta de pandanus, banana, inhame.
Seja na forma de óleo, polpa, creme ou leite, o alto consumo de coco naturalmente levava os indivíduos a terem uma ingestão bastante elevada de gorduras saturadas. A importância do coco era tão grande que esse alimento, sozinho, representava 63% do total de calorias ingeridas pela população de Tokelau, como pode ser observado na tabela abaixo, na primeira linha da terceira coluna:
Seja na forma de óleo, polpa, creme ou leite, o alto consumo de coco naturalmente levava os indivíduos a terem uma ingestão bastante elevada de gorduras saturadas. A importância do coco era tão grande que esse alimento, sozinho, representava 63% do total de calorias ingeridas pela população de Tokelau, como pode ser observado na tabela abaixo, na primeira linha da terceira coluna:
Por isso, 49% do total de
calorias das mulheres adultas, e 47% dos homens adultos, eram provenientes de
gorduras saturadas. Em números absolutos, isso significa 120 g/dia para as mulheres e 137 g/dia para os homens. Não chegavam
aos valores máximos dos Maasai e Samburu, mas são equivalentes aos valores mais
básicos dessas duas populações africanas — além de serem, é claro, muito mais elevados
que as quantidades observadas em praticamente qualquer outro lugar do mundo.
Novamente, esse braço dos
estudos da população de Tokelau foi primariamente motivado para se compreender
a relação entre gordura saturada e saúde cardiovascular. E, novamente, os
resultados foram os mesmos observados para os Maasai e Samburu: elevadíssimo consumo
de gordura saturada com baixíssima prevalência de problemas cardiovasculares e outras doenças crônicas. Essas
associações não necessariamente significam uma relação causal, mas, mais uma vez, podem
facilmente colocar em cheque a suposta relação positiva entre o maior consumo
de gorduras saturadas e o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
Curiosamente, quando o
movimento migratório de Tokelau para a ilha principal, a Nova Zelândia, se
iniciou, não foram vistas muitas alterações na incidência de doenças crônicas.
Porém, com o passar do tempo e com hábitos alimentares cada vez mais
modificados e integrados ao padrão ocidental, as pessoas começaram a
desenvolver várias doenças crônicas, como diabetes tipo 2, hipertensão arterial (sistólica e diastólica) e gota — todas diretamente relacionadas à
síndrome metabólica. E tudo isso com uma menor ingestão de gordura saturada quando comparada à ingestão das pessoas que permaneceram morando em Tokelau.
Considerações finais
O consumo de gordura
saturada na dieta ocidental não apenas não está aumentando como nunca foi, de
fato, elevado — e muito menos “excessivo”. Mesmo considerando que os dados
populacionais coletados são imperfeitos, e que eles têm grande chance de
estarem subestimando a verdadeira ingestão média ao redor do mundo, ainda assim
as dietas ocidentais estão longe de serem ricas em gorduras saturadas.
Para completar, temos
exemplos de populações tradicionais com padrões alimentares extremamente ricos
em gordura saturada, como Maasai, Samburu e Tokelau, que mesmo assim não
desenvolvem problemas cardiovasculares — e, de maneira geral, também não
sucumbem a outros problemas crônicos e metabólicos.
Como, então, podem dizer que a
gordura saturada é realmente um problema?
Mais importante: como podem
afirmar e demandar que quase todo mundo, especialmente as populações que
consomem dietas ocidentais, precisam reduzir a ingestão de gorduras saturadas?
Essas perguntas surgem
porque ainda tem muita gente, principalmente órgãos e instituições que formulam
diretrizes, dizendo que a gordura saturada faz mal. Mas vale sempre lembrar que
as evidências mais relevantes mostram claramente que o consumo de gordura
saturada não está associado a problemas cardiovasculares.
Se esses dados sugerem
uma ausência de associação com doenças cardiovasculares (com uma relação inversa no caso do derrame), e as populações tradicionais nos
mostram que a gordura saturada em quantidades verdadeiramente elevadas parecem realmente não ser prejudiciais, por que esse nutriente ainda é considerado como um fator relevante
nos problemas relacionados às dietas ocidentais?
Ainda mais levando em conta que as dietas ocidentais não são, e nunca foram, ricas em gorduras saturadas.