terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O mito das "frutas e verduras" — Parte 2




Na segunda parte dessa série, a ideia seria explorar a ciência que fala sobre como o consumo de frutas e verduras influencia os mais diversos desfechos de saúde, como saúde metabólica e cardiovascular. Mas esse assunto vai ficar para o próximo texto, porque alguns detalhes merecem ser esclarecidos antes.

O que vamos discutir agora não é algo exatamente novo, mas sim uma extensão do que foi discutido no último texto. Ou seja, um pouco mais de aprofundamento para que o assunto fique o mais claro possível.

Na seção de comentários da primeira parte, surgiu a seguinte dúvida:

Se não são as frutas e verduras, quais são os principais alimentos que contribuem para nossa ingestão de vitaminas e minerais?

Essa dúvida é interessante por dois motivos:

1) Dizer que as frutas e verduras não são nossas principais fontes de vitaminas e minerais não contradiz tudo que é sempre falado não só por nutricionistas, mas por todas as pessoas em geral? Estaria então todo mundo errado?

2) Considerando que grande parte da população apresenta baixo consumo de frutas e verduras, mesmo esses alimentos não necessariamente sendo os mais importantes em termos de micronutrientes, não estaria quase todo mundo deficiente em vitaminas e minerais?


Um breve momento de reflexão

Antes de entrarmos novamente em mais detalhes (numéricos) sobre como as frutas, verduras e outros alimentos contribuem para a nossa ingestão de vitaminas e minerais, vamos refletir um pouco sobre os pontos acima.

Vamos começar pelo segundo ponto.

Por si só ele já é bem interessante, porque reforça justamente o que foi discutido no primeiro texto. A lógica é a seguinte. Sabemos que o consumo de frutas e hortaliças é relativamente baixo por grande parte, possivelmente pela maioria, das pessoas. Se esses alimentos fossem nossas fontes mais importantes de micronutrientes, todo mundo que possui baixo consumo de frutas e verduras apresentaria sinais e sintomas claros de deficiências nutricionais. Mas não é isso que acontece. É claro que alguns indivíduos acabam sim desenvolvendo um certo grau de insuficiência em uma ou outra vitamina ou mineral, mas no geral a maioria das pessoas apresenta níveis corporais minimamente aceitáveis para esses nutrientes — caso contrário, como falei logo acima, sinais e sintomas mais evidentes se manifestariam.

Logo, a simples observação de que a maioria das pessoas não apresenta deficiências nutricionais virtualmente acaba com quaisquer dúvidas que poderíamos ter sobre a real importância das frutas e verduras como fontes de vitaminas e minerais. É claro que não são alimentos que precisam ser desconsiderados, porque todos os alimentos podem contribuir para nossa ingestão de micronutrientes. Mas é claro que as frutas e hortaliças não são nossas fontes mais importantes.

Agora o primeiro ponto.

A verdadeira contribuição das frutas, verduras e outros alimentos para nossa ingestão de vitaminas e minerais vai ficar ainda mais clara logo abaixo. Aqui eu só queria dizer o seguinte: a todo momento vivemos ou observamos contradições. Na ciência, isso talvez seja ainda mais comum. As contradições só surgem quando nos apegamos às nossas certezas. Se estivermos abertos ao desconhecido, não vai haver contradições, apenas novas informações.

Além disso, somos muito precipitados e temos a tendência de ficarmos cegos pelos nossos próprios vieses. É bem provável que a história de que as frutas e verduras são nossas principais fontes de vitaminas e minerais tenha surgido do fato de que são alimentos que possuem baixo valor calórico, e também por serem alimentos coloridos e tradicionalmente considerados como saudáveis. Quando começamos a ver aspectos bons em alguma coisa, automaticamente temos a tendência de enxergar ainda mais pontos positivos. Se temos a percepção de que determinados alimentos são saudáveis, geralmente vamos achar que eles são nutricionalmente ricos.

Então por que ninguém questiona esse ponto sobre a concentração de micronutrientes em frutas e verduras? Provavelmente por conveniência. Conveniência no sentido de que é difícil ver algum problema nessa história. Muito pelo contrário: como a maioria das pessoas e dos profissionais já enxergam as frutas e verduras como os alimentos mais saudáveis entre todos, considerar que elas são nossas principais fontes de vitaminas e minerais é só mais uma vantagem desses alimentos que são vistos como perfeitos em quase todos os aspectos.

Dito isso, vamos à parte que interessa.


Um exemplo mais concreto

Para responder à pergunta de quais são os alimentos que mais contribuem para a nossa ingestão de vitaminas e minerais, montei um cardápio simples, levando em consideração alimentos comuns da alimentação brasileira.

Abaixo, o cardápio com 5 refeições. Basta clicar na imagem para ampliá-la:




Traduzindo:

Café da manhã
- Mamão papaia (1/2 unidade)
- Pão branco (50 g)
- Queijo (30 g)
- Peito de peru (30 g)
- Leite (300 mL)

Lanche da manhã
- Uvas (150 g)

Almoço
- Arroz branco (150 g)
- Feijão (150 g)
- Contra-filé bovino (120 g)
- Alface (50 g)
- Tomate (50 g)
- Couve (50 g)
- Banana (1 unidade)

Lanche da tarde
- Ovos (2 unidades)
- Maçã (1 unidade)

Jantar
- Arroz branco (150 g)
- Feijão (150 g)
- Peito de frango (120 g)
- Cenoura (50 g)
- Beterraba (50 g)
- Brócolis (50 g)
- Laranja (1 unidade)


Agora, vamos ver o quanto as frutas e verduras, assim como o restante dos outros alimentos, contribuem para o total de vitaminas e minerais ingeridos. Não precisamos comparar alimento por alimento, mas apenas frutas e verduras contra a soma dos outros alimentos. Porque mais importante do que responder “qual alimento contribui mais?” é responder “as frutas e verduras são mesmo os alimentos que mais contribuem para nossa ingestão de micronutrientes?”.

Vitaminas:



Minerais:



Se considerarmos apenas as carnes (bovina e de frango) e o feijão, ainda assim as frutas e hortaliças não chegam nem perto do valor nutricional. Das 22 vitaminas e minerais avaliados, o “placar” final fica 14 x 7 para as carnes e o feijão — com empate no manganês, por isso a soma 14+7 = 21 em vez de 22. Esses três alimentos levam a melhor em: vitamina B1, vitamina B2, vitamina B3, vitamina B5, piridoxina (vitamina B6), vitamina B12, folato, cobre, ferro, magnésio, fósforo, selênio e zinco. Apenas 3 alimentos (540 g de comida) contra 11 frutas e verduras (> 1 kg de comida).

Como disse no texto anterior, quando contrastamos peso por peso, as frutas e hortaliças já não levam vantagem quando comparadas a alimentos de outros grupos alimentares. Além disso, elas muitas vezes são consumidas em quantidades inferiores às de vários outros alimentos, o que leva a uma contribuição final ainda menor por parte das frutas e verduras para o total de micronutrientes ingeridos. Não tem muito segredo.

E vale mencionar que, no exemplo acima, considerei 300 g de verduras e mais 4 porções de frutas ao longo de um dia. Isso talvez represente ou chegue perto do que algumas pessoas consomem, mas certamente está consideravelmente acima do que grande parte da população, talvez a maioria, costuma ingerir. Se levarmos em consideração esse último cenário, a dieta utilizada como exemplo estaria tranquilamente superestimando a quantidade de micronutrientes que muita gente obtém a partir das frutas e verduras.

E no caso de pessoas que consomem mais frutas e hortaliças?

Podemos dobrar as quantidades desses dois grupos alimentares, na dieta exemplificada, para ver o que acontece com as vitaminas e minerais:



Mesmo com uma quantidade diária bem elevada (> 2 kg de comida), consumida por pouquíssimas pessoas Brasil e mundo afora, as frutas e verduras ainda assim corresponderam à menor parcela das vitaminas e dos minerais.


Fim do interlúdio

Mais uma vez, é importante deixar claro que o fato de não serem as nossas principais fontes de vitaminas e minerais não faz com que as frutas e verduras sejam alimentos piores que os demais. Elas só estão longe de serem a forma mais eficaz ou eficiente de obtenção desses nutrientes. Só isso.

Todos os alimentos têm seu valor, e por isso não devemos considerar que uns são melhores que os outros. Eles são simplesmente diferentes. E, sendo diferentes, alguns vão ser melhores do que outros em alguns aspectos e vice-versa. Como não podemos atribuir “pesos” diferentes para as mais diversas características dos alimentos, de nada adianta ficar afirmando que uns são melhores que os outros.

Se formos falar de benefícios, podemos nos lembrar que as frutas, por exemplo, não apenas não levam ao ganho de peso como podem contribuir com o emagrecimento. E o mesmo vale para as hortaliças: o simples fato de serem alimentos com baixa densidade energética pode ser um fator importante para ajudar pessoas que buscam a perda de peso. É claro que as calorias não são tudo, mas são sempre uma parte importante quando falamos de regulação do peso. E as frutas e verduras têm seu valor nesse ponto.

Sem contar outras características da composição desses alimentos que potencialmente afetam diversos aspectos da saúde humana. Mas essa discussão fica para o próximo texto da série.

A quem interessar, o site que usei para contabilizar as vitaminas e os minerais presentes nos alimentos foi o Cronometer.


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