Quem me conhece sabe que
a história que envolve a relação
patológica entre gordura saturada e doenças cardiovasculares é um dos meus
tópicos favoritos. Talvez por causa de todas as “controvérsias” que cercam o
tema; mas acredito que o tema me atrai ainda mais pela simples curiosidade.
O interesse por esse
assunto, em um grau um pouco mais superficial, surgiu enquanto eu ainda estava
na graduação: eu queria entender melhor a relação entre as gorduras da dieta e o
seu impacto nos níveis de colesterol sanguíneo. Eu não conseguia compreender
por que o consumo de gorduras saturadas, especificamente, levava ao aumento nos
níveis de colesterol enquanto que a ingestão de gorduras insaturadas,
principalmente poli-insaturadas, levava à redução nos mesmos marcadores. Não
parecia fazer muito sentido.
Eu até aceitava a ideia;
de maneira um pouco relutante, mas aceitava. Só que a inquietude só iria de
fato cessar quando eu descobrisse o porquê dessa regulação oposta dos níveis de
colesterol por diferentes tipos de gorduras.
Então fui atrás do
mecanismo fisiológico que explicava por que as gorduras saturadas levam ao
aumento nos níveis de colesterol, especialmente o LDLc (mas também o HDLc). E
eu acabei descobrindo* — os detalhes não vêm muito ao caso agora, mas pretendo
expandir essa discussão quando eu (finalmente) for escrever em mais detalhes
sobre toda a história da relação entre gordura saturada e doenças
cardiovasculares.
*Hoje (há muito tempo, na verdade) podemos afirmar
categoricamente que o consumo de gorduras saturadas, de maneira geral,
realmente induz o aumento em todos os tipos de colesterol sanguíneo, assim como
a maior ingestão de gorduras poli-insaturadas também gera uma diminuição nesses
parâmetros — principalmente em ambientes experimentais controlados. Esses são fatos, mesmo que em maior ou menor magnitude, dependendo
da individualidade de cada um. E essas constatações podem parecer controversas,
principalmente se acreditarmos que o colesterol sanguíneo, especialmente o
LDLc, tem uma relação direta com o desenvolvimento de doenças cardiovasculares
(dica: não tem).
Depois que eu descobri como
a gordura saturada regulava de forma “negativa” os níveis de colesterol, meu
interesse pelo assunto diminuiu um pouco. Afinal, a compreensão do mecanismo
foi, naquele momento — uma vez que eu aceitava que níveis elevados de LDLc
apresentavam uma relação causal com o desenvolvimento de doenças
cardiovasculares —, o que faltava para eu realmente aceitar que o maior
consumo de gordura saturada de fato estava relacionado ao maior risco de
doenças cardiovasculares.
Um tempo depois, à medida
que fui me interessando cada vez mais pela ciência da nutrição, meu conhecimento e capacidade crítica foram aumentando (o que é
natural quando ganhamos experiência em qualquer área), e isso fez com que novas
dúvidas surgissem.
Eu me deparei, por
exemplo, com evidências científicas que questionavam a relação entre o consumo
de gordura saturada e o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Se tais
evidências estivessem apontando para a direção certa, isso significaria que a
associação entre colesterol sanguíneo (especialmente o LDLc) e doenças
cardiovasculares também precisaria ser questionada — uma vez que o mecanismo
pelo qual a gordura saturada levaria ao aumento no risco cardiovascular seria
justamente por meio do aumento nos níveis de colesterol.
E por que eu decidi
contar toda essa história? Porque um novo estudo de revisão sistemática e meta-análise sobre a relação entre o consumo de gordura
saturada e o risco de derrame foi
recentemente publicado.
Então vamos lá.
Gordura saturada x Derrame: a verdadeira relação
Nesse novo estudo,
publicado em março de 2016, o objetivo foi muito simples: determinar a associação entre consumo de gordura saturada e o risco de derrame.
Essa relação já foi
pesquisada antes por vários estudos individuais e, inclusive, por um estudo de
meta-análise anterior, publicado em 2010. O diferencial
desse novo trabalho, principalmente em relação à última meta-análise, é a maior
quantidade de evidências que surgiu entre 2010 e o presente momento: pelo menos oito novos estudos foram publicados desde
então.
E como foi feita a
análise? Todos os estudos já publicados que avaliaram a relação entre a
ingestão de gordura saturada e o risco de derrame foram avaliados para
determinar se, juntos, existe algum tipo de associação entre as duas variáveis.
E não é que foi
encontrada uma associação?
No caso, uma associação inversa. Isso quer dizer que
o maior consumo de gordura saturada foi associado a um menor risco de desenvolvimento de derrame. Nas subanálises,
verificou-se ainda que a maior ingestão de gordura saturada apresentou relação
inversa com diversas outras variáveis: derrame
fatal; tempo prolongado de acompanhamento dos estudos (≥ 14 anos); ambos os tipos de derrame, ou seja, isquêmico
e hemorrágico.
Ao observamos a meta-análise mais antiga, publicada em 2010, é possível notar que,
apesar de não ter sido verificada uma associação significativa do ponto de
vista estatístico, os resultados já apontavam para essa relação inversa entre o
consumo de gordura saturada e o desenvolvimento de derrame, com um risco
relativo de 0,81 (Intervalo de
Confiança = 0,62–1,05). Esse valor de risco relativo equivaleria a uma redução
de 19% no risco de derrame (se tivesse sido observada significância estatística nesse estudo de 2010).
Na verdade, essa relação
inversa entre gordura saturada e derrame já havia sido verificada desde o estudo de Framingham, que foi um marco histórico para as pesquisas que envolvem fatores
de risco cardiovascular. Naquela época, o maior consumo de gordura saturada estava associado a uma redução de 10% no risco de derrame:
Esses resultados lembram, ainda, que a ingestão de laticínios integrais, mas não de leite e derivados desnatados, também foi recentemente associada ao menor risco de derrame fatal em um estudo holandês publicado em 2015.
Além disso, outros trabalhos de meta-análise já verificaram resultados muito semelhantes para a relação entre gordura saturada e o risco de doenças cardiovasculares. Os trabalhos de Siri-Tarino et al. (2010), Chowdhury et al. (2014) e de Souza et al. (2015) demonstraram que o consumo de gordura saturada não está associado ao desenvolvimento da doença cardiovascular mais comum de todas: o infarto cardíaco.
Além disso, outros trabalhos de meta-análise já verificaram resultados muito semelhantes para a relação entre gordura saturada e o risco de doenças cardiovasculares. Os trabalhos de Siri-Tarino et al. (2010), Chowdhury et al. (2014) e de Souza et al. (2015) demonstraram que o consumo de gordura saturada não está associado ao desenvolvimento da doença cardiovascular mais comum de todas: o infarto cardíaco.
E por que eu menciono
essa relação entre gordura saturada e infarto? Porque o derrame e o
infarto são essencialmente a mesma doença. A grande diferença é que o processo
de aterosclerose — ou seja, a injúria endotelial e a consequente formação de
coágulo nos vasos sanguíneos — acontece em artérias diferentes, e por isso
vai, em última instância, afetar órgãos distintos: cérebro (derrame) e coração
(infarto).
Em outras palavras, seria
extremamente contraditório verificar ausência de associação para uma doença
(derrame) e uma associação positiva para a outra patologia
(infarto). Assim, o fato de não haver associações em sentidos
contrários para essas doenças é mais um ponto a favor da inexistência de relação direta entre o consumo de gordura saturada e o
desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
Considerações finais
Algumas pessoas podem
questionar: “Esses são estudos de coorte. Não teríamos que embasar conclusões
sobre causa e efeito a partir de estudos de intervenção (ensaios clínicos)?”. E
eu concordo que esse é um ponto importante a ser levantado, mas podemos tirar conclusões importantíssimas sobre essa relação apenas utilizando estudos observacionais.
Eu explico.
Imagine que lá
no começo dos estudos da relação entre colesterol sanguíneo e doenças
cardiovasculares não tivesse sido observada qualquer associação entre as
variáveis. Imagine também que esse fosse um resultado que aparecesse de forma
consistente entre os estudos; ou seja, 3 ou 4 trabalhos seguidos, por exemplo,
mostrando que não havia relação entre colesterol sanguíneo e doenças cardiovasculares.
Assim, considerando que não tivesse sido observada nenhuma associação entre as variáveis, você acha que os pesquisadores iriam
avançar e tentar demonstrar uma relação
causal (por meio de ensaios clínicos) entre elas? A resposta é um simples não.
A chance de uma
associação neutra entre duas variáveis corresponder a uma relação de causa
efeito entre elas é muito pequena. Se a associação for inversa, como é o caso
da relação derrame-gordura saturada, a probabilidade é praticamente zero. Em
outras palavras, a associação entre duas variáveis em estudos observacionais precede a possível causalidade entre elas em estudos de
intervenção.
Portanto, considerando a
associação inversa, podemos afirmar com praticamente 100% de certeza que a
gordura saturada não apresenta relação causal com o maior risco de desenvolvimento
de derrame. E quem sabe ela, na verdade, não seja protetora?