segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O mito das "frutas e verduras" — Parte 1




Todo mundo sabe que comer frutas e verduras* é importante, certo? Mas por quê? O que torna esses alimentos diferentes dos outros? O que tem de especial neles? Por que temos a impressão de que eles são, talvez, os grupos mais importantes? Por que costumam ser mais lembrados que os demais?


*Tecnicamente, na Nutrição, o termo correto é hortaliças. Mas a maioria das pessoas fala verduras em vez de hortaliças. Nesse texto, vou usar as duas formas, mas sempre com o mesmo significado: alimentos vegetais que não são cereais, leguminosas, frutas, raízes, sementes ou oleaginosas — o que sobra são as hortaliças. E apesar de hortaliças ser o termo tecnicamente adequado, vai dizer que falar “frutas e verduras” não soa melhor do que “frutas e hortaliças”?


Essas perguntas talvez tenham várias respostas, mas acredito que uma delas resume quase tudo o que acreditamos sobre as frutas e verduras: elas são fontes importantes de vitaminas e minerais. Muitas pessoas não gostam, mas comem. Muitas pessoas não fariam questão, mas comem. Como explicar isso? Talvez a única resposta plausível seja justamente essa de que as frutas e verduras são as nossas melhores fontes de vitaminas e minerais. Se não temos muita escolha quando o assunto é a ingestão desses nutrientes tão importantes, então “tem que comer!”.

Tecnicamente falando, vitaminas e minerais compõem o grupo que chamamos de micronutrientes. O “micro” não é porque vitaminas e minerais têm um tamanho pequeno, mas porque são nutrientes que precisam ser ingeridos em quantidades bem menores que os macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras).

No dia a dia, costumamos falar mais sobre macronutrientes do que sobre micronutrientes. Seu amigo provavelmente nunca perguntou quantos miligramas de vitamina B3 ou zinco sua dieta tem, mas já deve ter perguntado quanto tem de carboidrato, gordura ou proteína. Apesar disso, ainda temos a tendência de considerar os micronutrientes mais importantes do que os macronutrientes. Quase ninguém se preocupa em ingerir quantidades insuficientes de carboidratos, proteínas ou gorduras, mas quase todo mundo já se perguntou se poderia estar com alguma deficiência de vitaminas ou minerais.

Além da ideia das frutas e verduras como fontes mais do que importantes de micronutrientes, existe outro ponto importante nessa história: as calorias. As frutas possuem baixa densidade calórica; as verduras têm uma densidade energética menor ainda. Isso significa que grandes quantidades (em peso) desses alimentos geralmente não apresentam um valor energético elevado. Poderia existir algo melhor do que consumir esses alimentos tão ricos em vitamina e minerais e, ainda assim, uma baixa quantidade de calorias? É quase um sonho, para pacientes e nutricionistas.

E talvez fique apenas no quase. Porque a realidade sobre a riqueza de micronutrientes nas frutas e verduras é um pouco, ou até muito, diferente do que quase todas as pessoas — quase todas mesmo, incluindo profissionais — acredita.


Densidade energética x Densidade nutricional

Mais acima mencionei a densidade energética, que nada mais é do que a concentração de calorias de um alimento em uma determinada quantidade. Para compararmos a densidade energética de dois alimentos diferentes, temos que usar a mesma quantidade (em peso) para eles.

Por exemplo, podemos comparar 100 g de abacate contra 100 g de um biscoito. Nessa quantidade, o abacate normalmente contém entre 100 e 150 kcal. Por outro lado, biscoitos podem conter entre 300 e 500 kcal. Dessa forma, uma vez que claramente contêm mais calorias numa mesma quantidade, podemos afirmar que os biscoitos possuem uma densidade energética superior à do abacate.

Além da densidade energética, temos também a densidade nutricional. Como o nome sugere, esse conceito está relacionado à concentração de nutrientes (micronutrientes) presente em determinada quantidade de um alimento.

A densidade nutricional é mais complexa do que a densidade energética, porque são inúmeras vitaminas e minerais que vão influenciar o quanto um alimento é nutricionalmente denso ou não. Na medida em que a densidade energética leva em consideração apenas o valor energético e o peso do alimento, temos um cálculo fácil que permite comparações simples e diretas entre os alimentos. Por outro lado, como temos dezenas de vitaminas e minerais quando falamos de densidade nutricional, comparar diferentes alimentos às vezes é difícil.

Mas nem sempre é difícil, mesmo quando não fazemos nenhum cálculo específico para a densidade nutricional. Utilizando o exemplo anterior, a comparação é bem simples. Se olharmos para cada um dos micronutrientes do abacate e de um biscoito, numa mesma porção de cada alimento (100 g, por exemplo), vamos ver que o abacate é mais rico que o biscoito na maioria das vitaminas e minerais — a não ser que estejamos falando de um biscoito adicionado de vitaminas e minerais, mas essa é outra história. Por isso, nesse caso fica fácil afirmar que o abacate é um alimento nutricionalmente mais rico, ou seja, com maior densidade nutricional, que os biscoitos.

As dificuldades podem começar a surgir quando comparamos dois ou mais alimentos de verdade. Por exemplo, como comparar o abacate a outra fruta? E como compará-lo às nozes e castanhas, já que o abacate, do ponto de vista nutricional, se assemelha mais às oleaginosas do que às frutas? E a comparação com outros alimentos de outros grupos alimentares?

E se os dois alimentos comparados forem semelhantes, mas um é mais rico na vitamina A e no mineral B, enquanto o outro é mais rico na vitamina C e no mineral D? Devemos atribuir "pesos" diferentes para nutrientes diferentes, a fim de determinarmos se um alimento é nutricionalmente superior ao outro? Por isso as respostas nem sempre são simples, até porque normalmente dependem do contexto e de uma série de outros fatores.

Até existem definições técnicas e “oficiais” de como podemos calcular a densidade nutricional dos alimentos, justamente como uma tentativa de se estabelecer os "melhores" e os "piores" alimentos que poderiam compor nossa alimentação. O pesquisador Adam Drewnowski, da Universidade de Washington, provavelmente é o principal nome nessa área. Particularmente não concordo com todos os critérios que são utilizados para classificar os alimentos de acordo com suas densidades nutricionais, até porque os pesquisadores costumam atribuir “pesos” diferentes para cada nutriente, mas esses estudos talvez tenham certo potencial. Para quem se interessar, duas sugestões de estudos para leitura:

- Concept of a nutritious food: toward a nutrient density score.
- Nutrient density: principles and evaluation tools.


Os mais ricos em vitaminas e minerais?

Aqui não vamos calcular valores específicos de densidade nutricional dos alimentos, até porque isso não é necessário. Para o nosso objetivo, que é entender o quanto as frutas e verduras são ricas em micronutrientes, simplesmente olhar para as quantidades desses nutrientes é suficiente.

Mas vamos analisar apenas as vitaminas, não os minerais. Porque algumas variáveis, como o solo no qual os alimentos são cultivados, podem fazer com a concentração de minerais varie consideravelmente, principalmente no caso dos alimentos de origem vegetal. Por isso, e também para as comparações ficarem mais simples e não muito exaustivas, vamos focar nas vitaminas.

Para cada grupo alimentar, os alimentos a seguir foram escolhidos pensando principalmente nas opções que os brasileiros tradicionalmente mais consomem. Optei por mostrar porções equivalentes a 200 g de cada alimento; quantidades menores do que isso (100 ou 50 g, por exemplo) fariam com que alguns gráficos ficassem muito pequenos, dificultando as comparações. Mais à frente vamos discutir por que comparar porções equivalente em peso, em vez de comparar os alimentos pelas calorias.

Primeiro, as frutas:






Para visualizar as imagens em tamanho real, basta clicar nelas.

O primeiro ponto a ser mencionado é que o grande mérito das frutas é a vitamina C. Quer garantir uma boa ingestão desse nutriente? Então inclua frutas na alimentação, porque muitas frutas são ricas em vitamina C. E é por isso que, por mais que a vitamina C seja tão importante quanto os outros micronutrientes, ela não é nem um pouco difícil de ser obtida pela alimentação.

As frutas amareladas, avermelhadas e alaranjadas, como mamão e goiaba, costumam apresentar boa quantidade de beta-caroteno e outros cartotenoides. As frutas e outros alimentos de origem vegetal não possuem vitamina A pré-formada em sua composição; esse nutriente é exclusivo dos alimentos de origem animal. Mesmo assim, o corpo consegue converter parte dos carotenoides em vitamina A, e por isso os gráficos mostram que as frutas e outros vegetais possuem vitamina A (mesmo que seja apenas "vitamina A", entre aspas mesmo).

E mais um ponto interessante: a diferença entre o abacate e as outras frutas. Primeiro, ele é rico em vitaminas diferentes. Segundo, ele possui uma concentração maior dos nutrientes nos quais ele é rico. Por exemplo, essa porção de abacate proporciona mais de 30% das nossas necessidades para vitamina E, vitamina K1** e vitamina B5. Tirando a vitamina C, que é de fácil obtenção, e a vitamina A, que é apenas "vitamina A", nenhuma outra dessas frutas comuns é particularmente rica em vitaminas específicas. A única exceção seria a piridoxina (vitamina B6) na banana.


**Existem duas formas desse nutriente: vitamina K1 e vitamina K2. As imagens mostram "vitamina K", mas se referem apenas à vitamina K1. A vitamina K1 está presente em grande quantidade em alguns vegetais, especialmente os de cor verde-escura. A vitamina K2, por sua vez, está presente principalmente em alimentos de origem animal (ovo, fígado) e alimentos fermentados (natto, queijo).


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Agora, as verduras:






De maneira semelhante ao que acontece com as frutas, as verduras alaranjadas, avermelhas e amareladas também costumam ser ricas em carotenoides. É por isso que vemos concentrações tão elevadas de "vitamina A" em todas as hortaliças acima, com exceção do tomate e da beterraba. "Mas o tomate não é vermelho?". Sim, mas a maioria dos carotenoides do tomate são do tipo que não pode ser convertido em vitamina A no corpo humano.

Como comentei acima, os vegetais verde-escuros costumam ser muito ricos em vitamina K, assim como mostram os gráficos. E o mesmo vale para o folato*** — com exceção da beterraba, os alimentos mais ricos nesse nutriente são todos verde-escuros.


***O termo folato se refere à forma de vitamina B9 naturalmente presente nos alimentos. Muitas pessoas chamam a vitamina B9 dos alimentos de ácido fólico, mas essa nomenclatura na verdade faz referência apenas à forma sintética dessa vitamina, encontrada na maioria dos suplementos.


E agora algumas perguntas. Além da “vitamina A” e da vitamina K1 (relativamente fáceis de serem obtidos, por serem tão presentes), além do folato, o que vemos de especial nas verduras em termos de micronutrientes? É verdade que os vegetais verde-escuros, incluídos propositalmente nessa análise para fazer contraste com as outras hortaliças, parecem se destacar um pouco mais. Mas tem alguma coisa que realmente chama a atenção, principalemnte se considerarmos apenas as verduras mais comuns (cenoura, alface, tomate e beterraba)?

Mais à frente, com os dados de outros grupos alimentares, podemos ter respostas um pouco mais claras para essas perguntas.


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Alimentos ricos em carboidratos:






Nos cereais, leguminosas, raízes e tubérculos, talvez a maioria das vitaminas estejam presentes numa concentração um pouco maior que nas frutas e verduras; se realmente for o caso, a diferença seria pequena. Nada que impressione muito.

Até temos alguns destaques: folato (vitamina B9) = feijão e lentilha; piridoxina (vitamina B6) = feijão, lentilha, batata inglesa e inhame; tiamina (vitamina B1) = feijão. Mas, ainda assim, nada que indique que cereais, leguminosas ou raízes e tubérculos são “superalimentos” do ponto de vista de micronutrientes.


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Alimentos de origem animal:






É claro que, assim como os vegetais, os alimentos de origem animal também não são ricos em todos os nutrientes. Mas veja o perfil geral. Olhe bem para a variedade e a quantidade de vitaminas que esses alimentos — especialmente o fígado, o ovo e as carnes — podem oferecer.

Não tem muito o que falar; as imagens falam por elas mesmas.

Uma sugestão para quem gosta de suplementos: por que não comer um pouco de fígado? (Sei que muita gente não gosta do sabor, mas a opção mais natural existe).

E já que estamos aqui, uma comparação especial:




Essa imagem diz tudo sobre por que não devemos consumir apenas a clara. A comparação é de 200 g de clara para 100 g de gema não só porque a gema é tão nutricionalmente superior que pode ser comparada com a metade da quantidade (o que é verdade), mas porque essa é mais ou menos a proporção (2:1) encontrada no ovo.

Do ponto de vista de micronutrientes, e até de outros nutrientes, a gema é incomparável à clara. É verdade que a clara tem seu valor, mas a gema é o coração do ovo.


Por que comparar em peso e não em calorias?

Algumas pessoas podem dizer: "Se compararmos os alimentos considerando as calorias, as frutas e verduras são mais ricas em vitaminas e minerais. Por exemplo, 200 kcal de frutas e verduras vão proporcionar mais micronutrientes do que 200 kcal de outros alimentos". Será?

Em alguns casos isso vai ser verdade. Caloria por caloria, as frutas e verduras — especialmente as verduras, as frutas nem tanto — provavelmente vão proporcionar mais vitaminas e minerais do que cereais, leguminosas, raízes, tubérculos e laticínios. Mas, mesmo comparando em termos de calorias, as frutas e verduras não necessariamente são nutricionalmente mais ricas do que ovos ou carnes (incluindo peixes e órgãos).

Vamos considerar uma porção de 500 g de frutas e verduras: laranja (150 g), maçã (150 g), alface (50 g), tomate (50 g) e cenoura (50 g). Juntos, esses alimentos proporcionam 184 kcal. Para termos o mesmo valor calórico, vamos comparar essas frutas e hortaliças a 90 g de carne bovina. Dessa vez, para termos uma análise mais completa, vamos usar valores de vitaminas e minerais na comparação:





Olhando apenas para as vitaminas, as frutas e verduras parecem levar vantagem. Mas devemos nos lembrar que a vitamina C e a "vitamina A" são facilmente obtidas porque estão amplamente distribuídas nos alimentos desses grupos; até mesmo pequenas porções de alimentos frutas e verduras normalmente são capazes de suprir nossas necessidades. Se não considerarmos essas duas vitaminas, é difícil dizer se as frutas e hortaliças são mais ricas que a carne bovina, até porque os nutrientes mais presentes em cada um deles são diferentes. E isso traz um ponto importante de ser lembrado: a importância, em termos de micronutrientes, de combinarmos alimentos de origem animal e de origem vegetal. E isso ajuda a explicar também porque somos uma espécie onívora.

Olhando para os minerais, as frutas e verduras parecem apresentar mais nutrientes em quantidades moderadas, mas a carne bovina parece proporcionar mais nutrientes em quantidades elevadas. Novamente, estamos falando de nutrientes diferentes. Nesse caso também não dá para afirmar que as frutas e hortaliças são melhores que as carnes, ou vice-versa; são diferentes, e até mesmo complementares, em termos de minerais.

Esse exemplo mostra como as comparações nem sempre são fáceis. De qualquer forma, o que eu queria trazer nessa discussão é que, mesmo quando comparamos em termos de calorias, as frutas e verduras não necessariamente levam vantagem em relação a outros alimentos. Mesmo se levassem, a diferença não seria grande o suficiente para considerarmos as frutas e verduras como os alimentos mais ricos em micronutrientes, enquanto deixamos um pouco de lado os outros grupos alimentares.

Mas a grande questão nem é essa. A verdade é que, por mais que as frutas e hortaliças até possam ser mais ricas do que alguns dos grupos alimentares quando comparamos caloria por caloria, a maioria das pessoas consome quantidades pequenas desses alimentos. Não é fácil encontrar uma pessoa que consome uma média de 500 g de frutas e verduras diariamente, mas é fácil achar pessoas que consomem 200 g ou mais de carne todos os dias. Assim como é relativamente fácil encontrar pessoas que consomem 200 g ou mais de cereais (arroz), leguminosas (feijão), ovos, raízes, tubérculos ou laticínios.

Se as pessoas consumissem 800 ou 1000 g de frutas e verduras por dia, poderíamos começar a pensar nas comparações em termos de calorias. Mas essa não é a nossa realidade.

Peso por peso, as frutas e verduras não contribuem tanto assim para a nossa ingestão de vitaminas e minerais. Em primeiro lugar, porque esses alimentos simplesmente não possuem quantidades tão elevadas da maioria dos micronutrientes. Em segundo lugar, porque, mesmo que fossem super concentradas em vitaminas e minerais, frutas e hortaliças são consumidas em quantidades relativamente baixas pela maioria das pessoas.


Considerações (semi)finais

Mesmo com dados e informações disponíveis, sabemos menos do que achamos que sabemos. Imagine o mundo de coisas que não sabemos; não só na nutrição, mas em tudo. Antes de acharmos que sabemos muito, temos que reconhecer que sabemos pouco. Esse caso das frutas e verduras é só um exemplo entre vários outros que existem.

A maior parte do que tinha para ser discutido foi falado ao longo do texto. Por isso, gostaria de resumir da seguinte forma: as frutas e verduras não são as principais fontes de vitaminas e minerais na alimentação da maioria das pessoas. Na verdade, considerando as porções e as variedades habitualmente consumidas desses alimentos, as frutas e hortaliças provavelmente são os grupos alimentares que menos contribuem para o total de vitaminas e minerais que boa parte (ou até a maioria) das pessoas no mundo ingere.

No entanto, se você tem uma opinião sobre algum ponto que eu possa ter deixado de considerar nessa discussão, e que talvez seja importante colocar em perspectiva, por favor compartilhe. A ideia aqui não é falar mal de frutas e hortaliças, mas sim mostrar que a realidade sobre a densidade nutricional dos alimentos é, no mínimo, consideravelmente diferente do que a maioria das pessoas acredita ser.

E não podemos esquecer: os alimentos são muito mais do que vitaminas e minerais, assim como são muito mais do que calorias, carboidratos, gorduras ou proteínas. A contribuição dos alimentos para o equilíbrio do organismo pode vir de várias formas diferentes, como pela presença de compostos considerados como antioxidantes e anti-inflamatórios.

Afinal, mesmo as frutas e hortaliças não sendo tão relevantes em micronutrientes, elas ainda assim são extremamente importantes para a saúde como um todo. Será?

Podemos ter tanta certeza?


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